terça-feira, 30 de julho de 2019

BDteca- José Abrantes & Miguel Rocha, O ENIGMA DIABÓLICO (1998): Mortimer encontra o Joker

O pastiche e a paródia, sobretudo em forma de homenagem, é uma prática comum em BD. Talvez o melhor exemplo seja a brincadeira de Uderzo e Goscinny com o pirata Barba Ruiva e tripulação, que vogavam nas páginas da revista Pilote, onde Jean-Michel Charlier e Victor Hubinon faziam publicar as aventuras do bucaneiro do 'Gavião Negro', as mesmas folhas que davam guarida a Astérix. E tão bem sucedida foi a graça, que os piratas recorrentemente postos a pique nos álbuns do pequeno gaulês se tornaram mais conhecidos que as personagens originais... A paródia pode mesmo constituir-se como subgénero: na revista Mad tem aí um dos seus pratos fortes; no mundo franco-belga, está nas bancas, inclusive em edição portuguesa, a bem sucedida charge a Blake e Mortimer, As Aventuras de Philip e Francis, de Nicolas Barral e Pierre Veys.
O pequeno volume da colecção «Quadradinho» #16, da autoria de Miguel Abrantes (Lisboa, 1960) e Miguel Rocha (Lisboa, 1968) é um despretensioso exemplo destas recriações. Título e capa remetem de imediato para as personagens de E. P. Jacobs: o primeiro é um divertido achado, combinando O Enigma da Atlântida  e A Armadilha Diabólica; o protagonista inominado, com barba passa-piolho, lembra o Prof. Mortimer, enquanto que o vilão não é o Coronel Olrik, mas um certo Conde Moloch, com acentuados traços do insano Joker, deslocado de Gotham para o lugar de Orelhos, onde se situa o solar lúgubre em que decorre a acção; em perigo e a pedir salvação, uma frágil jovem parecida com Adèle Blanc-Sec.  Melhores os desenhos que o texto, mas o conjunto funciona.  
O Enigma Diabólico (Associação Salão Internacional de Banda Desenhada do Porto, 1998)





Pedro Moura & Marta Teives, OS REGRESSOS (2018): uma apologia da ruralidade

Madalena regressa à aldeia onde viveu parte da infância com a avó paterna, havia pouco falecida, num reencontro com o espaço e o tempo em que foi feliz. Criança diferente, aberta aos sinais da Natureza, girando de médico para psicólogo, os pais decidem-se a deixá-la aos cuidados da avó, a única que não a punha em questão, fazendo perguntas dolorosamente incrédulas a respeito dos relatos da pequena, após as sortidas à floresta, nas imediações da casa. A partir daqui, tece-se uma narrativa de rememorização e perda, até Madalena se integrar no seu derradeiro lugar.
A capa, comecemos por aí, em que predomina a cor verde, dá-nos a imagem de uma jovem mulher à beira-rio, fumando e lendo um livro -- que no interior saberemos tratar-se dos contos de Julio Cortázar, Todos os Fogos, o Fogo, e que ocasionalmente se atravessam na narrativa. O reflexo da água dá-nos a mesma Madalena, mas ainda criança. A imagem prolonga-se para a contracapa, e o tom da clorofila cede aos castanhos de um grosso tronco, provavelmente um carvalho, ao centro do qual lemos o mote, como que inscrito na casca: "Nunca regresses ao lugar onde já foste feliz."
Numa BD, a prancha inicial é tão importante quanto a primeira frase ou o primeiro parágrafo de um romance. Em Os Regressos, quatro vinhetas (uma dela funcionando como duas) incidindo sobre a linha de caminho-de-ferro, condensam o tom da história: a partir da vista aérea panorâmica, a imagem vai fechando-se progressivamente até ao pormenor da máquina sobre os carris, à beira de trucidar um pequeno pássaro campestre. Mas a narrativa começa ainda antes da primeira página, em quatro vinhetas dispostas no frontispício e no verso deste -- recurso repetido no fim --, revelando um cuidado com o detalhe narrativo, sem dúvida um dos aspectos fortes do livro.
Trata-se, em suma duma apologia do mundo rural, com o que este pode revelar para lá das evidências. Texto de Pedro Moura (Lisboa, 1973) que respira muito bem nas pranchas de Marta Teives (Lisboa, 1977), com recurso sabiamente doseado quer à elipse quer ao pormenor, como requer uma narrativa desenvolta, lograda pelos autores. O trabalho da autora mereceu, aliás, o prémio para o álbum com melhor desenho do Amadora BD em 2018. Dito isto, o autor destas linhas, talvez por defeito seu, está longe das visões idílicas da ruralidade, muito distante da estesia pagã que o livro veicula, pois nem o campo se constitui necessariamente como lugar de harmonia em que o todo universal se funde nem a cidade forçosamente obriga ao império do gadget e do prozac. Cidade, idealmente, é sinónimo de civilização; o campo, sê-lo-á, ou não. (Polvo, Lisboa, 2018)