sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

o outro que era ele


Um homem acorda dum pesadelo com uma série de duendes ao lado, que lhe dizem ser um dos sete anões, e de repente, em miraculosa aparição, surge uma generosíssima mulata, longe de ser alva como a neve. (Os anões já estavam fora, mas não era o seu dia.) Recebe, confuso, um convite para uma apresentação dos Badsummerboys Band, no “Heaven – O Céu Bar” – nomes que só na cabeça dos autores – Geral (Mário Cavaco, Lisboa, 1973) e Derradé (Dário Duarte, Lisboa, 1971), sócios nas Produções de Marda – poderia vir ao prelo. E é no “Heaven” que, com ajuda dum uísque com duas pedras, se faz luz, e o filme da vida passa diante dos olhos do nosso homenzinho, que é nem mais nem menos que o próprio Pai Natal, entretanto retirado e barbeado.
Este exaustivo estudo de Geral & Derradé comprova que o Pai Natal é incompatível com o mundo de hoje: da complexidade da logística da distribuição aos direitos das renas, dos duendes reivindicativos, aos putos exigentes, e ao franchise amador, tantos os desafios a enfrentar… Felizmente, dois representantes duma multinacional propuseram-lhe um contrato milionário para exploração dos direitos de imagem, e promessas de descanso merecido, com dinheiro, miúdas e coca. Chegámos assim à balbúrdia presente, de tal forma que nem Dickens… Acordado de um pesadelo para outro, a história termina com o Pai Natal vestido de Pai Natal a distribuir presentes na boite do Céu, na festa do “Filho do Patrão”.
Pai Natal: Um Estudo Morfológico
texto: Geral
argumento: Derradé
edição: Polvo, Lisboa, 2001

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

os persas

Autobiografia de Marjane Satrapi (Rasht, Irão, 1969). até ao início da idade adulta, no seio duma família desafogada do Irão contemporâneo; trecho de vida que assistirá à revolução islâmica, à carnificina da Guerra Irão-Iraque e à normalização da repressão. História pessoal, história duma família, história dum país, Persépolis (quatro tomos, 2000-2003) é um bom exemplo de como a novela gráfica elevou a BD a outro patamar, tema a desenvolver noutra ocasião.
Um livro especial, que traz ao proscénio uma criança de dez anos Marjane Ebihamis, que se tornará 'Satrapi' (nome nada casual), figura real que se transporta para o mundo da BD, enquanto personagem, espécie de mistura feliz da Mafalda de Quino com a Esther de Riad Sattouf. Família especial, moderna e cultivada, classe alta, pais comunistas, ele descendente do xá Nasser Aldim, da dinastia Kadjar, que governou o país entre 1794 e 1925; aristocratas e marxistas num estado cujo tirano foi substituído pela não menos brutal teocracia dos aiatolas. Um país especial, o Irão (os gregos antigos chamaram-lhe Pérsia), berço duma grande civilização, encerrando todas as contradições em que se confrontam tradição e modernidade. Aspirações, refúgio no Ocidente, depressão, até à tomada de consciência de si, numa sociedade esquisofrénica.
Uma observação a propósito do desenho minimalista de Satrapi: reparem nos olhos das personagens e comparem-nos com os dos arqueiros do friso do palácio de Dario III (em exposição no Louvre), cuja capital era... Persépolis.
Persépolis
texto e desenhos: Marjane Satrapi
edição: Bertrand, 2015

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

espectros

Se a infância é um país, como escreveu Antoine de Saint-Exupéry em Piloto de Guerra (1942) – fragmento de uma frase maravilhosa que já aqui citámos a propósito da manga de Takashi Murakami, O Cão que Guarda as Estrelas –, há puerícias que melhor fora delas ser apátrida, pelos traumas, e o sofrimento que se transporta pelo resto da vida. O relato desenhado por Bernardo Majer (Lisboa, 1990), que André Oliveira nos oferece, um dos mais profícuos autores da BD nacional, é contudo um pouco menos pessimista. Entre o céu e o inferno há o purgatório, e será por aí Toutinegra transcorre.
«Qualquer vida tem uma história. Começa a ser conhecida desde o dia em que nascemos / e arrasta-se muito para além da nossa morte.» (p. 72). Esta é uma narrativa de desconformidade. A acção passa-se na aldeia de Moinho, um desses muitos lugares do país à beira da extinção, com meia dúzia de habitantes quase sem crianças e no limiar da fantasmagoria. No centro da narrativa está Pedro, rapazinho de nove anos a quem a vida virou as costas, um desadaptado sem que o saiba porquê, um incompreendido, que mais se compraz na contemplação da Natureza que na companhia das pessoas; entre a escola e a igreja, sem pai, a mãe devota e desequilibrada. Um estranho na sua pele, tem em Laidinha a única amiga e também única colega (a outra criança da aldeia), com pais relativamente idosos, “milagre, nascido à margem do tempo”.
E há também um velho moinho que esconde uma criatura fantástica e monstruosa, com quem Pedro e depois Laidinha, estabelecem uma relação de confiança, espécie de esfinge, “com voz doce de mulher”, a Senhora do Moinho: «Estou nos capítulos finais de todas as histórias que conto.» (p. 77). Um cenário para uma, várias tragédias dificilmente ultrapassáveis: «aceitar o fim de alguém é consentir o nunca mais» (p. 33). Será no regresso às origens da memória que Pedro encontrará a sua redenção: «Nunca me senti ser dali e ao mesmo tempo / nunca pertenci tanto a um pedaço de chão. » (p. 8)
Os tons suaves do desenho de Bernardo Majer, vinhetas sem cercadura, traço como que de ilustrador, à partida poderiam não ser os mais indicados para uma narrativa trágica como esta, pois Toutinegra sendo uma história sobre um miúdo, é tudo menos um livro infantil; e por várias vezes o nome de Didier Comès nos assomou na leitura e releituras – Toutinegra é um livro que se presta a revisitações. Mas à medida que o texto ia tomando conta de nós, mais se tornava evidente o erro e o preconceito dessa concepção do primado das trevas, aliás bem presentes, carecesse de sobressair na parte desenhada desta narrativa: para muitos o terror não é o negro que cobre, mas o branco que tudo desvela.
Toutinegra
texto: André Oliveira
desenhos: Bernardo Majer
edição: Polvo, Lisboa, 2019


quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Franquin antes de Gaston

Em 1955, Franquin estava em conflito com o editor Charles Dupuis, proprietário da revista Spirou. O autor criara já alguns dos maiores títulos da aventuras do jovem groom, como Os Herdeiros e O Roubo do Marsupilami. Na revista concorrente, Tintin, Raymond Leblanc, homem da Resistência belga que deu o braço a Hergé no pós-Guerra, torcia o nariz à circunspecção em demasia do hebdomadário, faltava-lhe humor. Estava, pois, criada a oportunidade para Franquin trabalhar na revista de Hergé e Jacobs.

Modeste et Pompon, série discreta mas importante para o desenvolvimento do percurso do seu criador, gira em torno do irascível Modesto, a namorada Pompom, contraponto de bom-senso, de Félix, um vendedor de inutilidades, além de três sobrinhos pestes -- condimentos para diversas peripécias de grande comicidade. É aqui que Franquin ensaia os esquemas insanes que depois iremos encontrar em Gaston Lagaffe, já de volta à Spirou; mas poderemos também vislumbrar algumas situações que viria a explorar nas Ideias Negras, expressão do seu lado mais sombrio.

A série foi continuada por Dino Attanasio (co-criador, com Goscinny, de Il Signor Spaghetti), Mittëi (O Incrível Désiré), entre muitos outros, com várias perninhas de alguns dos maiores autores do tempo: Peyo (Schtroumpfs), Tibet (Ric Hochet, Chick Bill), Greg (Achille Talon, Bernard Prince, Comanche), Van Hamme (História sem Heróis, XIII), Godard (Martin Milan)…

Modesto e Pompom

texto e desenhos: Franquin

edição: Asa, Porto, 2005

sábado, 14 de dezembro de 2019

viva o povo brasileiro

É um lugar-comum dizer-se que no estrangeiro vemos o torrão natal com mais acuidade, e o exemplo que logo surge é o de Eça de Queirós, cujos romances foram escritos em Inglaterra e França. É verdade, embora todo o espírito crítico e toda a empatia do autor de O Primo Basílio já estivessem contidos nas páginas de imprensa, da Gazeta de Portugal e O Distrito de Évora. Marcello Quintanilha (Niterói, 1971) vive há longos anos na Europa, mas nem por isso aquelas qualidades estão ausentes, pelo contrário: as seis narrativas de Folia de Reis constituem-se como um olhar pleno de ternura, mas sem embelezamento, dirigido ao povo brasileiro.
E quem são estes 'reis' de Quintanilha? Gente de paz e trabalho, gente de bem; o povo falando na sua língua errada que é a sua língua certa de onde chega a vida com verdade, dizia o grande Manuel Bandeira; que procura levar cada dia por diante, com o auxílio mágico/místico sincrético do 'Senhor Jesus' em combinação com a religiosidade popular de extracção africana, que tão perseguida foi. E do lenitivo dominical do futebol. Todas as seis estórias deste livro estão encorpadas por esse desafio do quotidiano, do torcedor do Flamengo a.J. (da era antes de Jorge Jesus...), doentiamente supersticioso (como vemos em “De como Djalma Branco perdeu o amigo em dia de jogo”), ao trabalhador negro que ainda não extirpou do seu interior a condição submissa inculcada pela persistência duma mentalidade gerada numa sociedade escravocrata (no impressionante «Dorso»); do matuto inofensivo ajudante dum circo de província, vítima da 'autoridade' brutal («A fuga de Zé Morcela»), ao futebolista medíocre duma equipa dos baixos escalões regionais, tornado, por cómico equívoco dos vizinhos, como potencial e quase certo jogador de selecção, sedentos que estão dum 'milagre' que lhes transforme a modorra de vida num lugar onde o diabo perdeu as botas (“De pinho”).
No meio destas narrativas de muito bom nível, destacamos uma jóia intitulada “Escola Primária”, estória de Selma e Tiago, este seguidor da religião do candomblé, aquela evangélica. Jovem adulta a frequentar os cursos de alfabetização pede ajuda a Tiago, pescador instruído (sabe ler e escrever) para um trabalho de casa sobre a História do Brasil, de modo a ficar com tempo livre para poder ir à festa da aldeia nessa noite. Selma bebe-lhe as palavras sobre os navegadores portugueses, os índios, os negros escravizados, as guerras – as dos estados e a deles mesmos: “A vida da gente já é uma guerra!”, exclama. Na prancha final, cujo conteúdo não se revela, espelham-se e esplendem as qualidades autorais de Marcello Quintanilha, argumentista e desenhador de quadrinhos.

Folia de Reis
texto e desenhos: Marcello Quintanilha
edição: Polvo, Lisboa, 2019


sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

desventuras do himeneu

Tal como Jacobs se retratou fisicamente no Coronel Olrik, arqui-inimigo de Blake e Mortimer, sendo ao que se sabe pessoa respeitadora da lei, também George McManus (1884-1954), designer de moda, caricaturou parte da fisionomia, aplicando-a aos traços do castiço Jiggs (que os brasileiros, com propriedade, renomearam como Pafúncio).
Bringing Up Father / Educando o Pai, cujas tiras apareceram na imprensa norte-americana em 1913, conta-nos o quotidiano duma família de novos ricos. De origem irlandesa, Pafúncio fora um trolha a quem saíra a sorte grande. Impecavelmente vestido (chapéu alto, colete distinto, polainas), bengala numa mão e charuto aceso, nunca deixou de ser um homem simples, cujas ambições, para além do vil metal, se resumiam a umas horas de pândega com os amigos. A mulher, Maggie (Marocas, na versão brasileira), antiga lavadeira, deslumbra-se com vestidos, jóias, a ópera, a sociedade – um tormento para o pobre cônjuge, que ainda tem de aturar os caprichos sentenciosos da filha, Norah, espécie de pin up langorosa.
A série anda pois à volta destas idiossincrasias de marido pelos cabelos com as pretensões operáticas da mãe e as maneiras dispendiosas da filha, quando não tem que levar com os cunhados penduras, todos cadastrados e recém-saídos da prisão. Escapar-se à família sem ser vítima de violência doméstica é sempre o grande móbil destas tiras, em que o protagonista ora tem êxito ora (na maioria das vezes) soçobra à ira conjugal.
Pafúncio
texto e desenhos: George McManus
edição: Martins Fontes, São Paulo, 1989

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

o Cid da Cidadela

A história contrafactual oferece possibilidades infinitas, com a vantagem, quanto a nós, sobre outro tipo de narrativas especulativas, pelo facto de as coordenadas serem mais reconhecíveis.
E se a Guerra Fria tivesse degenerado, com um conflito nuclear em solo europeu entre os Estados Unidos e a União Soviética? E se, em consequência da desarticulação política dos estados do Velho Continente, a História houvesse tomado um rumo distinto, não tendo sequer ocorrido a revolução portuguesa em 25 de Abril de 1974? Eis os pressupostos da série Ermal, da autoria de Miguel Santos.
No Hemisfério Sul, na capital de uma “província ultramarina”, os colonos portugueses e os que, vindos da Europa, conseguiram escapar, reorganizam-se por acção dos Capitães de Maio, um grupo de militares que tem para si a missão de assegurar a subsistência da nova cidade-estado. Esta não é mencionada, mas será Luanda – agora com o nome de “Cidadela”. Este reduto do antigo império colonial português tem de defrontar os colectivistas do exército proletário, entretanto tomado de assalto pela cupidez – o petróleo está ali à mão... –, o que levará a dissensões no seu seio. Tina, uma guerrilheira grávida e destemida, dirá a um tuga: “Uns turras são pela tirania, outros não.”
Dos Capitães de Maio sobressai o ‘Cid’, nome de guerra em homenagem a Rodrigo Díaz de Bívar, o Campeador castelhano contra os mouros, no século XI. Este Cid da Cidadela, de tez morena e com verbo fácil e cultivado, está em missão com o fim de captar o auxílio de um grupo armado não alinhado, como aliados contra os totalitários. Com a Cidadela envolvida por forças hostis, o inimigo do inimigo aliado pode ser.
A paisagem é a savana, e os bichos são os carros de combate, ou o que dentro deles evolui, não faltando mercenários e peões a falar o africânder (os sul-africanos) e o castelhano (os cubanos). As imagens dessa movimentação de homens e armas, evocaram a este leitor a célebre batalha do Cuito Cuanavale, o maior combate terrestre a ter lugar após a II Guerra Mundial, tão avassalador quanto inconclusivo, deixando marcas nos contendores, em especial nos que não tinham ligação àquele solo. Mas isto é a imaginação a funcionar, pois se não houve 25 de Abril, também não se deu a descolonização e muito menos se realizou tão fantástica refrega…
Sementes no Deserto é o terceiro livro desta série, depois de Quando a Guerra Fria Aqueceu e Terra e Sangue. São nítidas as qualidades narrativas: os diálogos, fluentes, rápidos e vivos, quando existem; e quando tal não sucede, a concepção das vinhetas, com recurso a vários planos (veja-se a operação militar, a páginas 26-28), alcança um bom dinamismo – um dos aspectos mais fortes desta BD, em que é visível o gosto de contar uma história original com vivacidade.
Ermal – Sementes no Deserto
texto e desenhos: Miguel Santos
edição: Escorpião Azul, 2019