quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

12 livros de 2020

No ano em que o maior vilão deu pelo nome de SARS-CoV-2, 12 dos livros aqui registados:

Álbum do ano: O Homem que Matou Lucky Luke, de Matthieu Bonhomme (A Seita). Recriação fascinada e fascinante dum ícone, com o melhor preito de homenagem, que não é o da cópia servil. Sabemos também por que razão Luke deixou de fumar.

Frase do ano: “Abandonados por Deus, era inevitável que o Diabo se interessasse por nós...” Fala de Duke em A Última Vez que Rezei, desenhos de Hermann, texto de Yves H. (Arte de Autor). Um processo de autodescoberta que estamos a acompanhar, uma luta individual da ética com o instinto. Hermann, como um dos maiores autores de BD vivos, Yves H. procurando servir o pai com argumentos à altura do talento que o fez parir.

Prestidigitação do ano: Zardo, de Tiziano Sclavi e Emiliano Mammucari (Sergio Bonelli), argumento a confundir deliberadamente o leitor, em que nada é o que parece, a começar pelo protagonista.

Heróis do ano: de carne e osso, Maurício Hora, cuja história André Diniz pôs em quadrinhos em Morro da Favela (Polvo), em segunda edição aumentada, na companhia de D. Iracema, um sorriso colorido num meio dum certo inferno.

Sex appeal do ano: a volúpia divide-se entre Blandine, a stripper ex-hospedeira, irmã gémea de uma conceituada harpista clássica, ovelha negra do par, em L’Instant d’Aprés, de Zidrou e Éric Maltaite (Dupuis) ou a prattiana Lady Darksee, bela, vaporosa, destemida, insolente, em Raven, de Mathieu Lauffray (Dargaud), história de piratas.

Patife do ano: Denis, “o executor”, assassino em missões oficiais, que se descobre com um resquício de consciência: Le Tueur –Affaires d'État 1. Traitement Négatif, por Matz & Jacamon (Casterman).

Escapismo do ano: a fantasia histórica de Colt & Pepper – Pandemonium à Paragusa, texto de Darko Marcan, desenhos de Igor Kordej (Delcourt), América, século XVII, coabitação entre monstros e homens, tiranos e sublevados.

Maluquice do ano: as desventuras de Mafaldo Limparrim na vila imaginária de Poço Novo (Alto Minho), em O Penteador, desnovela gráfica e insana de Paulo J. Mendes (Escorpião Azul).

Vírus do ano: o SARS-CoV-2, foi invectivado pelo catalão Max em Manifestamente Anormal (Panfleto e Catarse), diário do confinamento em que ninguém escapa (separata do jornal A Batalha, #288-289, Centro de Estudos Libertários). Mas os vírus não se ficaram por aqui: a epidemia de febre amarela foi este ano recuperada com a reedição de No Lazareto de Lisboa (1881), de Rafael Bordalo Pinheiro (Pim! e Museu Bordalo Pinheiro), enquanto que, em narrativa pós-apocalíptica, um misterioso organismo vindo do centro da terra destruiu todos os metais, voltando a Humanidade à madeira e ao couro: Le Convoyeur [o entregador], argumento de Tristan Roulot e desenhos de Dimitri Armand (Le Lombard).

«Leitor de BD»

















  1. O Homem que Matou Lucky Luke, de Mathieu Bonhomme (A Seita)

  2. Duke – A Última Vez que Rezei, por Hermann & Yves H. (Arte de Autor)

  3. Raven 1. Némesis, de Mahtieu Laufray (Dargaud)

  4. Le Convoyeur #1 . Nymphe, de Roulot & Armand (Le Lombard)

  5. Manifestamente Anormal, de Max (encarte de A Batalha).

  6. O Penteador, de Paulo J. Mendes (Escorpião Azul)

  7. Zardo, por Sclavi & Mammucari (Sergio Bonelli Editore)

  8. Le Tueur – Affaires d’État #1. Traitement Négatif, de Matz & Jacamon (Casterman)

  9. L’Instant d’Aprés, de Zidrou & Maltaite (Dupuis)

  10. Colt & Pepper – Pandemonium à Paragusa, por Markan & Kordej (Delcourt)

  11. Morro da Favela, de André Dinis, 2.ª ed., aumentada (Polvo)

  12. No Lazareto de Lisboa, de Rafael Bordalo Pinheiro (Pim! Edições e Museu Bordalo Pinheiro)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

conspirações


 

O sétimo álbum do segundo ciclo da série XIII, criada por Jean Van Hamme e William Vance, agora a cargo de Yves Sente (argumento) e Iuri Jigunov (desenhos). Jason MacLane, aliás 'XIII', infiltrou-se na Fundação Mayflower, uma organização ultraconservadora que pretende assenhorear-se da presidência dos Estados Unidos. O conluio passa por um atentado ao Papa, em visita ao país, que XIII é compelido a perpetrar e a liquidação do presidente americano. Na chefia do Estado está agora o presidente do Senado, implicado na conspiração. Resta assim à Fundação Mayflower reprogramar XIII e torná-lo indefectível à causa. Mémoire Rechargée, edição Dargaud, Paris 2020.

«Leitor de BD»

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

a História acontece hoje


 

Jacques Martin (1921-2010), o autor de Alix (1948), jovem escravo gaulês que um dia chegará a senador romano, é um dos nomes de referência da linha clara. Todos os bedéfilos o conhecem, bem como os historiadores da Antiguidade Clássica, pelo rigor documental com que foi fazendo evoluir a série, tornando-se um profundo conhecedor do período, e com pensamento próprio. Martin tinha duas paixões: a História e os motores: criador de várias personagens cuja acção se desenrola em períodos bem definidos, foi contudo, com uma série de actualidade, Lefranc, que o autor pôde dar azo a essas duas paixões em simultâneo – é notável o gosto com que as máquinas são postas em cena no álbum de hoje.

Criado em 1954, Lefranc é um jornalista que como outras personagens da BD – Tintin ou Ric Hochet – se destaca não pelo que escreve, mas pelas aventuras em que se envolve, e como sucede com estes, o tempo passa por si sem que envelheça, sempre contemporâneo do período em que cada narrativa decorre. Martin sabia que o momento presente é a História a desenrolar-se diante dos nossos olhos; e Lefranc, surgido no rescaldo da II Guerra, adentra-se pela Guerra Fria, quando a mesma História correu o risco de parar.

O Mistério Borg (1964) é um thriller como tantos, em que um aventureiro se apodera de um vírus mortífero, disposto a vendê-lo a uma potência inimiga. A caminho de uma estância de ski suíça, o Alfa Romeo Giulietta de Lefranc é perigosamente ultrapassado por um Fiat 2300, e instantes depois por um Jaguar Mark 2. Ficaremos a saber tratar-se de uma perseguição: no Fiat segue o infame Prof. Fosca, assistente do célebre biólogo Zerni, o homem que isolara o temível “supervírus”, assim ingenuamente chamado; Fosca fez o mestre ir desta para melhor, encomendando um atropelamento; atrás dele, na estrada suíça, ia uma criatura mais perigosa: Axel Borg, a némesis de Lefranc. Aventureiro elegante e educado, apreciador de arte, sem escrúpulos, rico já de si mas almejando mais, apodera-se do letal micro-organismo, propondo-se fazer uma experimentação, usando os habitantes de uma aldeia isolada dos Alpes como cobaias. Grande parte da trama decorre sob e sobre a neve suíça, terminando em Veneza, onde as forças do bem triunfarão sobre a maldade, a riqueza, a ambição de Borg, um bandido que se faz admirar, mesmo por Lefranc.

É o terceiro álbum da série, primeiro entre nós, e o derradeiro desenhado por J. Martin, então nos Estúdios Hergé e já tendo trabalho de sobra com Alix. Diga-se que não foi fácil, na primeira metade dos anos 50, convencer a Casterman a publicar um herói como Lefranc; só queriam Alix, que dava dinheiro a ganhar. De tal modo que impuseram que o herói fosse louro como o gaulês, e que tivesse também um rapazinho como coadjuvante, Jeanjean, escuteiro órfão acolhido pelo jornalista , pois os eunucos da época proibiam as mulheres jovens na BD.


O Mistério Borg

texto e desenhos de Jacques Martin

edição: Livraria Bertrand, Venda Nova, 1982

«Leitor de BD»

domingo, 27 de dezembro de 2020

Jorge Miguel

 



Talvez mais conhecido em França – onde publicou vários álbuns com o selo de Les Humanoïdes Associés, que no seu país –, Jorge Miguel (Amadora, 1963), vê agora a edição conjunta dos dois tomos de Shangai Dream (2018-2019), com argumento de Philippe Tirault. A história fala-nos de Bernhard e Illo, um casal judeu alemão apaixonados também pelo cinema, fugidos da psicopatia nazi. O exílio ocorrerá em 1938, de Berlim até Xangai. Tintin estivera por lá em 1935 (O Lótus Azul) e Ferreira de Castro, em carne e osso, em 1939 (A Volta ao Mundo), a cidade ocupada pelo Japão imperial. Quem leu um e outro sabe que o filme era de terror. Edição conjunta de A Seita e Arte de Autor.

«Leitor de BD»

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

à sombra da árvore de fantasia

 

Chegara Dezembro: fazer a árvore, dispor as peças do Presépio, os Reis Magos de aspecto medieval – um deles parecia-lhe o D. Dinis, cuja imagem construíra na cabeça nos bancos da escola, e a culpa era toda de Eugénio Silva, o desenhador das histórias aos quadradinhos das Lições de História Pátria, livro para a 3.ª Classe que até hoje contamina o seu imaginário. A alegria das crianças, delicioso lugar-comum. Tudo isso divertia, já adulto, o descrente que era, de homens e deuses, porém impregnado de cristianismo, fascinado por essa religião beduína e exótica.

Recuava, e via-se sentado com um álbum aberto, Valérian – O Embaixador das Sombras, enquanto a avó preparava os enfeites. Sagrada era a família, presentes e ausentes, banidos todos os arrufos e incompreensões do resto do ano. Havia o bom senso e a civilidade de nada trazer para a Consoada que pudesse perturbar a felicidade genuína e sempre fugaz. Retrocedia ainda mais, e via-se nessa imagem já muito ténue com a mãe, folheando o Astérix na Córsega pela primeira vez. A cada livro que abria na noite de Natal, à sombra dessa árvore de fantasia, eram elas quem de novo lhe faziam companhia.

«Leitor de BD»

Trillo & Mandrafina

 



Dois autores argentinos de referência, Carlos Trillo (1943-2011) e Domingo Mandrafina (1945) num quadro negro da América novecentista centrada numa família de origem italiana, os irmãos Cantobucchi, com ramificações na Máfia, na Igreja e na Polícia. Spaghetti Bros, tomos 1-4, Arte de Autor, Estoril, 2020.

«Leitor de BD»

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

'O Raio U'


Já aqui falámos da primeira BD de Edgar P. Jacobs, iniciada em 1943, quando Flash Gordon e os demais comics americanos havia sido proibidos na Bélgica ocupada. Três anos mais tarde, seria a vez de Blake e Mortimer. É sempre bom ver as primícias de um autor notável. Nova edição na Asa. 

«Leitor de BD»

domingo, 20 de dezembro de 2020

no lugar do morto




Uma jovem mulher sai de casa apressada e definitivamente, sem se despedir, aproveitando a circunstância de o companheiro estar no duche. Vemo-la afastar-se do prédio, num daqueles pátios milaneses a lembrar as vilas lisboetas, outrora (ou ainda) populares. À sua espera, num saudoso Peugeot 504, está, Federico, amante para quem se bandeou. Francesca, raparigaça estouvada, leve e fresca, tontinha q.b. ou com os alqueires mal medidos, tanto faz, a pregar uma mentira ao rapaz: “foi compreensivo, não fez cenas”, aludindo à suposta reacção de Zardo, deixado sob o chuveiro.

Federico não sabia ainda que teria de regressar ao local para satisfazer um capricho da amante: esta esquecera-se de um creme anticelulite especial, só disponível no estrangeiro... (estamos ainda na década de 1990); era forçoso lá voltar, e que fosse Federico, coisas de machos. Ao invés do creme, trará o cadáver de Zardo, que encontra degolado, dum só golpe bem desfechado. Chamar a polícia?, não chamar?... que justificação daria para a sua presença ali, junto do cadáver ainda fresco? Dizer que era o homem por quem a mulher do defunto trocara, não ajudaria; e via já o sobrolho desconfiado dum agente, inquirindo com ironia, se o morto acaso usava creme anticelulite... Assim, depois do estupor, a precipitação – cadáver numa mala com mãozinhas de fora... E a partir daqui o argumento de Tiziano Sclavi – o criador de Dylan Dog – conduz-nos através de uma trama em que tudo será possível numa só noite, em orgia de violência, mais sangue que sexo, jogando às escondidas com o leitor, que segue ávido a evolução dos bonecos pranchas afora, desconfiado que Sclavi quer fazer de Machado de Assis, que há mais de cem anos tem posto toda a gente perguntar-se se Capitu traiu ou não Bentinho. Quem matou Zardo, afinal?, e que homem era esse, que quase toda a gente confunde agora com Federico, o que passou a achar-se no lugar do morto? – ou seja: ficou com a mulher, com o nome (agora ele é Zardo, os velhos vizinhos confundem-nos) e até a generosa herança materna, entretanto levada a falecer, que a si irá parar...

Baseado num argumento datado dos anos oitenta, adaptado ao cinema e publicado sob a forma de romance, intitulado Nero. (1992), Sclavi deu-nos um thriller denso, insidioso, negro. Tudo o que parece poderá ser, oferecendo diversas possibilidades, graças também à infração dos códigos dos quadradinhos no que respeita ao desvio do fio narrativo em desafio ao leitor, das analepses às (pretensas?) alucinações: vinhetas com cercaduras esbatidas, ou mesmo sem elas, filacteras com outro formato, sfumatto ou alteração ou ausência de cor, nada disso está no trabalho estupendo e minucioso de Emiliano Mammucari (Velletri, Roma, 1975), que para este trabalho trocou as aplicações informáticas pelos velhos pincéis e marcadores, significando também um regresso à própria juventude, ao tempo histórico em que a acção decorre .


Zardo

texto: Tiziano Sclavi

desenho: Emiliano Mammucari

edição: Sergio Bonelli Editore, Milão, 2020

«Leitor de BD»

sábado, 19 de dezembro de 2020

o Oeste natural

 



Com Buddy Longway, estreado em 1972 nas páginas da revista Tintin,o suíço Derib trouxe ao western uma dimensão diferente, muito longe dos usuais lugares-comuns; uma abordagem mais humanista e ecológica, contacto com o outro (o herói constituiu família com uma índia), um desenho e um grafismo soberbos. Mas a génese do espírito dessa série maior está numa outra para crianças, a do indiozinho sioux Yakary, estreada em 1969, com argumento do também suíço Job. Volvido mais de meio-século, Derib continua encantado com a sua personagem. Um novo álbum aí está, o 43.º, desta vez com argumento de um estreante na BD, Xavier Giacometti: Le Fils de l’Aigle, Le Lombard, Bruxelas, 2020. No fundo, trata-se em parte de uma outra forma, mais infanto-juvenil e para todos, de abordar questões como o respeito pela natureza, a ajuda mútua...

«Leitor de BD», jornal i

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

planeta encardido

 


O Imperador Toxico governa o planeta Carvão, um astro sujo e triste em que os habitantes trabalham nas minas apenas para benefício do soberano. Num desses locais subterrâneos, Apollo, um jovem filho de mineiro, tem como função verificar a segurança das estruturas que sustentam essas galerias subterrâneas, onde os homens trabalham sem ver a luz do dia. O rapaz conhece a mina como as mãos, mas um dia, alertado por um ruído estranho, vê algo que até aí desconhecera e que poderá mudar a vida àqueles tristes habitantes. “Esperança”, L’Espoir é o título do primeiro tomo desta nova série, com um desenho disneyescamente entusiasmante de Michel Colline, autor também do texto. Edição Pacquet, Genebra, 2020.

«Leitor de BD», jornal i

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

das duas américas


 


Muito se tem falado nas duas Américas, a propósito das eleições presidenciais nos Estados Unidos. É uma divisão que vem de longe, ainda antes da Guerra da Secessão (1861-65). O pretexto principal foi o da permanência da escravatura nas províncias meridionais, dependentes economicamente das culturas do tabaco e principalmente do algodão, conflito que estala com a eleição de Lincoln em 1861, um aberto abolicionista. Mas a questão é menos simples do que parece: houve estados esclavagistas a combaterem pelo Norte. em que prevalecia uma ideia mais centralizadora do estado, a União, onde prosperava uma elite industrial e financista, com grandes universidades e centros fabris que impulsionavam as inovações tecnológicas; do outro, a Confederação, de visão mais descentralizada, porventura romântica – assim os derrotados e seus descendentes gostam de salientar, forma de tentar esconder a nódoa ética de uma sociedade, por vezes faustosa, assente no trabalho de quatro milhões de negros escravizados. O resultado será um conflito fratricida arrepiante, 620 mil mortos – nunca os Estados Unidos conheceram um número aproximado de baixas em qualquer guerra –, um ressentimento no campo derrotado que não se desvaneceu e abjecções como o Ku Klux Klan, criado após a derrota, ou as infames leis segregacionistas.

Isto e muito mais num número da revista GéoHistoire, dedicada à série humorística Os Túnicas Azuis / Les Tuniques Bleus, criada em 1968 para a revista Spirou por Raoul Cauvin (Antong, 1938), desenhada por Louis Salvérius (1933-1972) e continuada a meio do quarto álbum e até hoje por Willy Lambil (Tamines, 1936). Após a partida de Morris para a revista Pilote, o semanário precisava de um western que preenchesse a vaga deixada por Lucky Luke. As primeira aparições dão-se em gags, história breves em torno a questão índia. É já com Lambil que Cauvin vai explorar o filão da Guerra da Secessão, contando com mais de sessenta álbuns e 22 milhões de exemplares vendidos. Tal sucesso, deve-se aos dois protagonistas, de que falaremos em pormenor noutra ocasião – o cabo Blutch, o anti-herói, e o sargento Chesterfield –, mas também ao rigor com que Cauvin se documentou sobre tantos aspectos da contenda que, iniciada ainda à maneira das campanhas napoleónicas, será a primeira a prefigurar o calvário Grande Guerra de 1914-18, com as suas carnificinas (51 mil mortos na batalha de Gettysburg...), os primeiros couraçados e submarinos rudimentares, a vulnerabilidade das cidades, os motins... E foi também a primeira a ser objecto de reportagem fotográfica, através da lente de Mathew Brady, cujos imagens aí estão, disponíveis à distância de um clique.

Menos popular entre nós, por razões de história editorial, os artigos e entrevistas do número da GéoHistoire, não só enquadram historicamente esta longa série belga, como é ele próprio uma boa introdução a este universo dos Túnicas Azuis, uma forma humorística e leve – mas não ligeira – de tratar a maior guerra que a América viveu, em casa.


Les Tuniques Bleues et la Guerre de Sécession

GéHistoire #53

Outubro-Novembro de 2020

«Leitor de BD», jornal i

domingo, 13 de dezembro de 2020

"Bella Ciao"




Lavoro infame, per pochi soldi, o bella ciao bella ciao“... Canção popular de trabalho na Itália oitocentista, em protesto contra a dureza da labuta nos arrozais da Emília-Romanha e do Véneto, foi recuperada pelos partigiani, na II Guerra Mundial. Baru, autor francês de origem italiana, reflecte sobre a condição imigrante, neste caso de origem italiana, mas que se estende a qualquer outra, procurando interpelar um problema candente do nosso tempo: o preço a pagar para que um estrangeiro deixe de sê-lo, tornando-se transparente numa sociedade cada vez mais hostil. Edição Futuropolis, 2020.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Berserker

 


Quando um guerreiro robusto, ao modo de Conan o Cimério entra por um portal mágico numa metrópole, perseguido por um feiticeiro nefasto que quer mandá-lo para o Inferno, não lhe basta fugir, mas proteger do malvado as pessoas com quem contacta... Um bocado fartos de portais mágicos e outras jigajogas, mas... porque não? O argumento é de Jeff Lemire, os desenhos do brasileiro Mike Deodato, a edição da GFloy.

«Leitor de BD», jornal i

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Brigada Caimão reactivada

 


No segundo tomo de Black Program, por Laurent Frédéric Bollé e Philippe Aymond. Bruno Brazil, Gaucho Morales e Tony o Nómada (com Whip Rafale na rectaguarda, em cadeira de rosas) regressam a um teatro de operações, o seu elemento, desta vez em busca de um cientista da NASA que carrega no organismo informações sensíveis. Edição Gradiva, 2020.

«Leitor de BD», jornal i

domingo, 6 de dezembro de 2020

da idade de ouro


Este leitor lembra-se dum certo Tio Carlos que aparecia nas páginas do Diário de Lisboa, há mais de meio século. Perdeu-lhe o rasto, desconhece o nome original, a autoria, mas esse imaginário duma curta história sem palavras, quando leitor ainda estava para ser, não mais o abandonou. As tiras: quatro vinhetas e um sorriso esboçado no fim…

Henry, o miúdo careca, desengonçado e que não fala – como não falavam os pantomimeiros do cinema mudo, nem o Reizinho, de Otto Soglow, influências directas – é uma dessas personagens icónicas da idade de ouro dos funnies, cujo surgimento foi um pouco inusitado. Carl T. Anderson (1865-1948), filho de imigrantes noruegueses radicados no Wisconsin, era um jovem marceneiro, inventivo e com sentido artístico, que após frequentar um curso nocturno em Filadélfia ruma a Nova Iorque na transição do século para trabalhar nos jornais, repartindo-se entre o cartoon e os comics: The Filipino and the Chick é uma abordagem mordaz à questão filipina, no âmbito da Guerra Hispano-Americana, e Raffles and Bunny, é inspirado nas narrativas do ladrão-cavalheiro, criadas por E. W. Hornung. Sem grande sucesso, porém, era o cartoon que então lhe assegurava o sustento. Após o crash bolsista de 1929, Anderson, dobrados os sessenta anos, regressa à cidade natal e ao ofício da marcenaria, leccionando desenho em aulas nocturnas. Numa delas, o autor falhado esboçou esta cabeça de ovo, nariz empinado e boca praticamente invisível. Os alunos adoraram o boneco e Anderson deu-lhe o nome de um deles: Henry.

Animado pela reacção dos estudantes, envia alguns trabalhos ao Saturday Evening Post, jornal que acolheu grandes artistas gráficos, como Norman Rockwell. Era pois um homem entrado na velhice quando o êxito lhe bateu à porta, de forma retumbante e com alcance mundial. Impressionado com o ataque desferido pela máquina de propaganda nazi contra o boneco, “Henry o velhaco”, assim lhe chamaram os sequazes do Goebbels, William Randolph Hearst, magnata da imprensa, contrata-o para o King Features Syndicate. As tiras diárias e a página de Domingo, o trabalho e a saúde precária obrigaram-no a empregar assistentes: Don Trachte (1915-2005), trabalhará 61 anos em Henry, assinando a prancha dominical... Nas tiras, John Liney (1912-1982). Outros se seguiram, até ao final da série em 1995, mas jornais em todo o mundo continuam a publicá-las.

O livrinho de hoje é todo de John Liney, excepto a tira da contracapa, de Anderson. Henry – que mantém o nome em Portugal, enquanto que no Brasil será Pinduca, e depois Carequinha – ,tirando o não falar e a calvície seria uma criança como as outras (um anjo, se comparado com os Katzenjamer...). Guloso, por vezes teimoso, esperto e ingénuo, conforme as ocasiões, às voltas com Henriqueta, menos infantil, mais sabichona. Humor estribado em qualidades de observação notórias dos autores, de atenção ao quotidiano – o lugar de Henry, que é também o nosso.


Henry

autores: John Liney e Carl T. Anderson

edição: Portugal Press, Lisboa, 1971

«Leitor de BD», jornal i

sábado, 5 de dezembro de 2020

não-violência

 


Publicado já entre nós o primeiro tomo de O Castelo dos Animais, de Xavier Dorison, com desenhos de Félix Deleppe, eis que a editora Casterman lança o segundo de quatro álbuns deste follow-up de Animal Farm, a extraordinária fábula política antitotalitária de George Orwell, publicada em 1945. Em Les Margueritesd'Hiver. Madame B., a gata, organiza a resistência contra o touro Sílvio e os seus pides, os cães, ou a inteligência contra a força bruta.

«Leitor dr BD», jornal i

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

65 álbuns depois


 

Os Túnicas Azuis surgem com uma história que não é do seu criador, Raoul Cauvin, a preparar o 66.º, mas do casal BeKa e de Munuera, que também assina os desenhos, em vez de Willy Lambil. Desta vez, o cabo Blutch e o sargento Chesterfiled têm de escoltar William Russell, um jornalista inglês do Times, a fazer a reportagem da Guerra Civil americana. E ao contrário do que esperavam os oficiais do Norte, que o enquadravam, Russell é isento... Edição Dupuis, Marcinelle, 2020.



«Leitor de BD», jornal i

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

era uma vez um desejo

 


A combinação da manipulação genética e o mistério, corporizado num “objecto muito antigo”, uma missão arriscada para um “transportador”. BD portuguesa de ficção científica e pós-apocalíptica ,por Véte: Haverá um Amanhã!?, edição Escorpião Azul, 2020.

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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

duas pepitas



 

Uma colectânea de BD tem a vantagem de fazer uma aproximação ao estado da arte e o inconveniente de trazer uma molhada de trabalhos menos relevantes, que, porém, se diluem se o nível geral for satisfatório. No livro de hoje – apresentado impropriamente como “antologia”, conceito que pressupõe a escolha de material previamente existente e, em geral, já publicado – o nível geral das narrativas propostas é interessante, impressão benigna para a qual contribuíram duas pepitas, essas sim, merecedoras de figurar em qualquer antologia.

TheLisbon Studio (TLS) é uma experiência de coabitação, de que resultaram quatro volumes temáticos, dedicados às Cidades, ao Silêncio, às Viagens e, este ano, às Raízes. Raízes literais ou metafóricas, de cunho realista ou alegórico , são sete: “O último dia da marmota”, de Quico Nogueira; “Solitude”, de Filipe Andrade; “Ferida, entre os canaviais”, de Marta Teives, com texto de Pedro Moura; “One Way”, de Bárbara Lopes; “Sem cuecas nem soutien”, de Nuno Saraiva;“Em nenhum outro lugar”, por Ana Branco e “Entre as sombras e a luz”, de Ricardo Cabral.

Escreve no prefácio André Diniz, brasileiro de raízes bem portuguesas: “Um único conceito pode ter diferentes conotações ao ouvido e às emoções de cada um de nós, e nenhum caminho é mais apropriado para explorar essas possibilidades do que a arte.” Entre uma narrativa de antecipação, a abrir, e o fecho no género fantasia – ambos graficamente conseguidos, mas algo débeis nos argumentos –, as restantes remetem-nos para evocações da infância e da juventude, os espaços, os afectos familiares e de camaradagem, a descoberta, a despreocupação, as equívocas percepções de quem ainda viveu pouco, por vezes o próprio desenraizamento e a distância a que tudo isso já está, parece que ainda ontem, E as pepitas aí estão, não desfazendo, abençoados 12 euros (p.v.p.): “Solitude”, de Filipe Andrade (Lisboa, 1986), uma narrativa sem palavras, um poema gráfico, 14 pranchas, incluindo o frontispício, a maioria de vinheta inteira; o tópico do farol, da solidão elemental e da passagem do tempo, a transmissão hereditária de uma missão. Apetece ouvir o standard do Ellington, já agora magnificado por Billie . Sinestesias...

Nuno Saraiva (Lisboa, 1969), um dos grande autores portugueses de BD e também notável cartoonista, com um estilo inconfundível, em “Sem cuecas nem soutien” fala-nos dos “episódios iniciáticos” que fizeram o caminho para o autor que é: o programa de Vasco Granja, doseando sabiamente Tex Avery e Zdeněk Miler, Chuck Jones e Norman McClaren, as ilustrações fulgurantes de Gustave Doré para Bíblia, os traumas que o Calimero provocava, os “anos dourados” no recreio da escola a cantar a música do “Sandokan” (“sem cuecas nem soutien...), índios, cowboys e outros bonecos de levar no bolso para brincar, enquanto os tempos não mudavam e as brincadeiras se tornavam outras. Doze pranchas, falsa vinheta dupla nas páginas pares, mais duas em baixo; seis nas páginas ímpares, os olhos deslizam e páram. Esplêndido. Abertura e remates a condizer.


TLS Series – Raízes

Vários autores

edição: The Lisbon Studio e A Seita, Lisboa, 2020

«Leitor de BD», jornal i

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

«Armazém Central»


Centrada no quotidiano de uma aldeia do Quebeque, Armazém Central é uma das mais belas séries de banda desenhada alguma vez publicadas, Iniciada em 2005 , os três primeiros álbuns foram publicados em Portugal pela Leya/Asa. Saem agora, com atraso, os tomos quatro e cinco reunidos num único álbum (critério discutível): Armazém Central – Confissões e Montréal, por Régis Loisel e Jean-Louis Tripp, Arte de Autor, Estoril, 2020.

«Leitor de BD», jornal i

sábado, 28 de novembro de 2020

"Toma lá 500 paus e faz uma BD"


 Concurso promovido pela Chili com Carne, este ano distinguiu Rodolfo Mariano, com Bottoms Up, romance gráfico acabado de publicar. Depois de uma longa viagem, o Simão chega finalmente à grande cidade cheio de sonhos e motivação para vencer na sua nova vida.” Sim, e então?... É o que tentaremos ver numa das próximas semanas.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Barelli, 70 anos


Criado há 70 anos por Bob de Moor (1925-1992) para a revista Tintin, Georges Barelli é um actor que se vê frequentemente em situações perigosas. O autor foi um lugar-tenente da linha clara de Hergé, o que diz muito, mas é insuficiente. Assinalando e efeméride, editora belga BD Must reeditou um pack com todos os sete álbuns das suas aventuras, mais extras.

«Leitor de BD», jornal i

terça-feira, 24 de novembro de 2020

uma rapariga estranha



Série iniciada em 1979 na revista francesa Circus, publicada pela editora Glénat, de Grenoble, logo granjeou a melhor atenção de público e crítica, sendo o autor, François Bourgeon (Paris, 1945) distinguido no ano seguinte com o Prémio “Alfred” (o pinguim de Zig e Puce) para melhor desenhador, no Festival de Angoulême. Os Passageiros do Vento revelam no mesmo autor o melhor que uma BD pode oferecer: um argumento consistente, um estilo rico, cheio de recursos e o modo criativo e dinâmico como a conjugação de texto e desenho se harmonizam numa prancha, processo que está para a BD como o enquadramento e a montagem estão para o cinema.

O tempo é o último quartel do século XVIII, pouco antes da Revolução Francesa; o espaço é o Oceano Atlântico, com algumas analepses relativas ao percurso da protagonista, a partir daqui uma figura icónica, personagem inesquecível da BD global. A Rapariga no Tombadilho é o primeiro de uma série de cinco álbuns publicados até 1984. A capa mostra-nos uma jovem e estranha mulher empoleirada à noite e à chuva no cordame dum barco que se adivinha de grande porte – uma forte imagem de apresentação duma nova BD. A bordo do “Foudroyant”, embarcação de 74 canhões da Marinha Francesa, capitaneado por Benoît de Roselande, um aristocrata pouco competente como marinheiro, duas jovens mulheres vão resguardadas da tripulagem, até serem avistadas fortuitamente por um grumete bretão, o rapaz Hoël. Agnes e Isa, duas aristocratas, uma rica outra pobre, a segunda acompanhando a primeira, não são quem dizem ser, mas estão amarradas a uma falsa identidade, por uma brincadeira que correu mal. A vítima e heroína é Isabeau, a rapariga da capa, insurrecta, aprendeu a usar de toda a manha, violência, argúcia e dissimulação que lhe permita sobreviver num mundo de homens, em que da mulher se espera apenas o exercício das funções de fêmea. Mas Isa não tem nenhuma dessas vocações, pelo contrário, é libérrima, o que dará ensejo ao autor de enveredar por um erotismo à época transgressor, embora elegante.

Um dos grandes méritos de Bourgeon é a forma como encaixa a informação histórica na narrativa, a erudição com que emprega os termos técnicos de navegação, não apenas no nomear de tudo o que compõe um grande veleiro de guerra, como também as manobras navais, incluindo táctica de combate. A informação flui com naturalidade, e é assim que podemos perceber as tensões sociais que anos mais tarde iriam desembocar na violência revolucionária dos sans-culottes, do povo-miúdo, ou o mundo antagónico que opunha tradicionalistas e iluministas, nos diálogos e picardias travados entre o capelão e o médico de bordo.

Bourgeon trabalha numa sequela centrada numa descendente de Isa, que já aqui noticiámos. Os Passageiros dos Vento é uma série cuja presença é imprescindível numa biblioteca essencial de banda-desenhada.


Os Passageiros do Vento – 1. A Rapariga no Tombadilho

texto e desenhos: François Bourgeon

edição: Meribérica / Liber, Lisboa, s.d.

domingo, 22 de novembro de 2020

«Balada para Sophie»


 

Um concurso de jovens pianistas, oriundos da mesma localidade, um de família rica, outro filho dum funcionário modesto, cruzam-se pela primeira vez em 1933, num concurso de jovens talentos, em que apenas um foi premiado. Em 1997, uma jornalista entrevista o primeiro, tecendo uma narrativa com a presença dum espectro tornado rival 64 anos antes. Texto de Filipe Melo – também pianista de jazz – e do argentino Juan Cavia. Edição Tinta da China, Lisboa, 2020.

«Leitor de BD», jornal i

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

«Umbra» #2

 


Segundo número da publicação periódica pela editora do mesmo nome, com quatro histórias de fantasia e realidades alternativas: “O coração atómico de Jan”, do canadiano Simon Roy; «Camping Gás», de Pedro Moura, Filipe Abranches e Bárbara Lopes; “Duas espadas”, de Pedro Moura e Jorge Coelho; e “Os pesadões”, com nova legendagem, do malogrado Fernando Relvas (1954-2017).

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terça-feira, 17 de novembro de 2020

Pratt

 


Os Escorpiões do Deserto é outra série maior de Hugo Pratt, iniciada em 1969, logo após Corto Maltese. Apesar de reminiscências pessoais, familiares e dum precário domínio italiano em África, o relato é feito por Koinsky, um oficial polaco a combater com os ingleses. A Ala dos Livros está a publicá-la em três volumes, tendo saído o segundo, incluindo Um Fortim em Dancália e Conversa Mundana em Mulhoule.

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segunda-feira, 16 de novembro de 2020

uma outra montanha mágica


 

Recém-chegado de uma ilha ignota a uma cidade sem nome em busca de trabalho, Mafaldo Limparrim encontra colocação como penteador de manequins numa discreta loja de miudezas, à Rua dos Parâmetros Assertivos. O dono passava a maior parte do tempo na vilória do Poço Novo, numa encosta de montanha, da qual se dizia os ares serem pouco saudáveis. Quando Mafaldo vai de encontro ao patrão à cata de instruções, começa também uma viagem de eléctrico por um novo mundo que os quadradinhos portugueses até agora ignoravam, ciceroneado pelo lápis e pelas palavras de Paulo J. Mendes (Porto, 1965), autor e fanzinista durante 30 anos afastado da BD, mas não desligado das artes visuais, e cujo gosto retomou quando mão amiga fez chegar umas quantas novelas gráficas, género consagrado principalmente por Will Eisner.

Na apresentação, Mendes dá-nos o grande plano da narrativa: “Um território imaginado de contornos perfeitamente definidos, um punhado de situações surrealistas, e algumas peripécias vagamente baseadas em vivências reais, tudo temperado pelo gosto por paisagens e arquitecturas pitorescas, arte sacra e talha barroca, os eléctricos desde sempre acarinhados e sem esquecer a evocação, transpondo para o plano da fantasia, duma fascinante e estranha capela perdida – sim, existe mesmo – enigmática e quase tumular, com a qual tinha dado de caras há uns anos a percorrer certas serranias do Alto Minho.”

Mafaldo sobe de eléctrico (em vez de descer…) ao Poço Novo, tímido e receoso dos tais maus ares, pois quem de lá vem chega sempre num estado alterado de consciência, o que não é de admirar, já que nessa vila come-se bem (favas com chicória é o prato típico) e bebe-se melhor (o célebre “licor garganta”, do pároco); além disso, em cada esquina um amigo, e na porta em frente a possibilidade de uma cama com companhia. É todo um novo patamar de relacionamento humano que se abre ao protagonista, Hans Castorp virado do avesso sem divagações sobre o Tempo ou colóquios de filosofia política.

O Poço Novo é uma espécie de paraíso terreal de que as autoridades se esquecem; o lugar dá-se bem sem a autoridade. Não obstante, os seus representantes acabam por ser compelidos à vez pelo grupo de pândegos a conhecerem o que vale a pena. “Salsicho” o autarca, os soberanos Gelásio e Purgantina e o próprio pontífice Dligberto, cada qual em seu eléctrico (popular, real ou papal) rumo àquele torrão edénico parado no tempo. Mas o melhor achado é Atrofiel, o anjo-da-guarda estagiário recolhido na igreja de S. Barnabilro, que se empenha com pundonor em assegurar a felicidade de Mafaldo, pese embora a falta de competência.

O penteador é um delírio a ser lido, um microcosmos pessoal, um osso que o autor não deveria largar.


O Penteador

texto e desenhos: Paulo J. Mendes

edição: Escorpião Azul, Lisboa, 2020

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