terça-feira, 28 de dezembro de 2021

de A a Z - M, de Martin Milan (Godard, 1971)


Piloto de um táxi-aéro, o “Velho Pelicano”, que a cada voo fica mais desconjuntado, Martin Milan é um humanista entre o fleumático e o frio, sempre do lado do mais fraco e inseparável do seu cachimbo. O humor entrelaça-se com a poesia.

«Leitor de BD»


sábado, 25 de dezembro de 2021

É Natal!


Para crentes e não crentes, e para quantos têm um Norte, Com votos de Boas Festas, aqui fica um Presépio desenhado por Fernando Bento (1910-1996), um homem dos jornais e das revistas, do Diário de Lisboa ao Cavaleiro Andante – ambos de óptima memória – extraído do seu primeiro livro, A Última História da Xerazade (E.N.P., Lisboa,1944), em que deu brilho às palavras de Adolfo Simões Müller.

«Leitor de BD»

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

a vez de Nadine



Ric Hochet, série policial e detectivesca criada em 1958 por André-Paul Duchâteau (1925-2020) e Tibet (Gilbert Gascard, 1931-2010) para a revista Tintin. É do melhor que se fez no género. Ao longo de 78 álbuns – o último é publicado no ano da morte de Tibet –, conta-nos de um jornalista irrequieto e glamoroso constantemente partícipe em thrillers levados da breca, cuja namorada, Nadine, é sobrinha do comissário de polícia Sigismond Bourdon – um trio que resulta sempre nos quadradinhos. Brevemente trataremos da série canónica, porque hoje o álbum pertence aos “Novos Inquéritos de Ric Hochet”, A vaga de revisitações que felizmente ocorre na BD franco-belga não podia deixá-lo de fora, sendo, em 2015, a personagem entregue a Zidrou (Anderlecht, 1962) – esplêndido argumentista de quem já aqui falámos algumas vezes – e a Simon van Liemt (Aix-en-Provence, 1974).

Em Comissaire Griot (2021), Zidrou situa temporalmente a acção em 1970 – uma inovação, uma vez que Ric Hochet pertence ao grupo de personagens que não envelhece, acompanhando o tempo presente. Motivado por um intercâmbio estabelecido entre as polícias de França e do Senegal, Bourdon desloca-se por dois meses a Casamansa, sendo substituído pelo comissário Ousmane Lamine Cissoko Dior, um gigante africano quase sempre irónico com os equívocos de teor racista de que é alvo, numa sociedade parisiense habituada a ver nos filhos das ex-colónias os concidadãos (?) da base da pirâmide social. Zidrou vai aqui de encontro ao espírito do tempo, fazendo-o do nosso ponto de vista, pelo ângulo certo, o do humor.

Outro assunto na ordem do dia é o do empoderamento (palavra horrível) feminino. Na série canónica, estreada há mais de sessenta anos, Nadine era uma fillette graciosa que servia para aligeirar a atmosfera pesada da trama, algo inconcebível actualmente. Agora vive com Ric, foi admitida como repórter no mesmo jornal em que este trabalha e já é não apenas a namoradinha do herói , mas uma parceira bastante mais expedita que o companheiro nos avanços amorosos, o que é sempre uma alegria para o olhar. De resto, nunca se viu tanta roupa interior nestas histórias outrora para rapazes bem comportados. Não tanto pelo que estarão a pensar – não de todo erradamente – ,mas porque um dos casos que aflige a polícia é o de um certo “Cupido”, que ataca mulheres na casa dos trinta, quarenta anos, atando-as a uma cadeira, cravando-lhes no coração um punhal, no qual se prende uma carta que lhe é destinada, sempre entoando uma canção romântica. Paralelamente, o cadáver de um velho exorcista é encontrado pela porteira do prédio, com o coração arrancado e depositado na mão, que o médico legista verificará não corresponder ao da vítima... Ao mesmo tempo, em África, Bourdon, em choque cultural, anseia pelo regresso.

Resumindo: um Ric Hochet aggiornato, mas secundarizado por uma esplêndida Nadine e pelo próprio comissário Dior (sem relação de parentesco com a famosa casa, como gosta de dizer...). Van Liemt cumpre com brio. Considerando estar a substituir Tibet, não é nada pouco.


Les Nouvelles Enquêtes de Ric Hochet t. 5 – Commisaire Griot

texto: Zidrou

desenhos: van Liemt

edição: Le Lombard, Bruxelas, 2021

«Leitor de BD»

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

as férias do Pato Donald



Les Vacances de Donald, de Frédéric Brrémaud e Federico Bertolucci. Esplêndida colaboração ítalo-francesa, põe o Pato Donald em fuga do bulício citadino rumo às placidez campestre, ao volante daquele maravilhoso Belchfire Runabout de 1934, matrícula 313. Tratando-se de Donald, já sabemos que o bulício passa agora para o campo. Uma abordagem mais europeia na planificação das pranchas, com um ritmo narrativo – sem palavras – muito inspirada nas curtas-metragens clássicas produzidas por Walt Disney. (Glénat)

«Leitor de BD»

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

o que foi Stuart?


1- Nova visita a um pioneiro dos quadradinhos em Portugal, embora num âmbito mais largo, abrangendo as várias dimensões em que Stuart se expressava, do cartoon à pintura, do capismo e ilustração ao desenho publicitário. Foi o que fez João Paulo Cotrim (Lisboa, 1965), argumentista de BD, entre outras coisas, aqui no papel de historiador ensaiante em torno da vida e obra do criador de Quim e Manecas, em Stuart – A Rua e o Riso (2006), livro de grande formato e volume, para ser lido e visto (e, no nosso caso, também sublinhado) – tudo menos um coffe table book, embora o sainete seja garantido. É excelente o trabalho de Cotrim, pela profusão das imagens, a forma pensada com que o livro foi arrumado e o levantamento das fontes, em que não faltam as homenagens de colegas do mesmo ofício (de Valença a Amarelhe) ou nossos coetâneos (de António a João Fazenda, inéditos até aqui). Acresce fragmentos dos homens dos jornais, como Norberto Araújo, das revistas literárias, o caso de José Pacheko (Contemporânea e Portugal Futurista), e o incomparável e desvairado Reinaldo Ferreira, o Repórter X (nom de plume que aproveitou de um desenrascanço de tipógrafo que não percebera a assinatura), que assim escrevia sobre essoutra deste Stuart, em 1923: “Um S a tombar sobre um t hirto que estende a mão ao u escancarado e que ameaça engolir o a d'imprensa que se lhe segue e que, por sua vez, parece galgar um r que vai encostado a um t final, espécie de poste de cruz, a fechar...” (p. 22). Com eles, fragmentos de escritores de coturno mais alto, como veremos para a semana.

Nascido em Vila Real, José Herculano Stuart Torrie d'Almeida Carvalhais (1887-1961), provindo de famílias tradicionais, foi um aristocrata da boémia lisboeta, de onde irradiava o talento que a necessidade e a dependência alcoólica não tolhiam. Muito cedo iniciado nas lides jornalísticas, começa a publicar em O Século, no ano seguinte ao da morte de Rafael Bordalo Pinheiro, de que não será herdeiro, como Cotrim sublinha, ao contrário dos nomes proeminentes do desenho humorístico de então. Começa por assinar JStuart Carvalhaes, mas na década de 1910 já marcava de espadachim os trabalhos que lhe saíam. Depois de um breve período em Paris, que lhe alargou as vistas, regressa, casando-se, em 1913, com uma varina, “como a querer dizer que desposa a cidade” – escreve o autor; essa Fausta Moreira, cujo traço não conheceremos, tornada onírica à força de a imaginarmos; e ele, Stuart, o culpado, graças a essa obsessão boa pela beleza do sexo feminino, como também veremos.

Uma única exposição individual realiza, aos 45 anos, na Casa da Imprensa. Stuart, talvez desleixado e pueril, mas livre, não tinha jeito ou apetência para se vender, embora do trabalho lhe viesse o sustento. Norberto de Araújo, numa passagem que impressiona, fala “[n]esse rapaz que a si próprio tão insuficientemente se respeita” (o “rapaz” já tinha 40 anos), fazendo uma comparação um pouco forçada com Verlaine. Pode ser, Mas respeitar-se como e o quê, senão o próprio trabalho, numa Lisboa, retrato do país, provinciana e basbaque?

2- Em pintura, Stuart foi o que pôde ser e não provavelmente o que quis. “Não passo d’um fabricante de desenhos”, dirá. Trabalho restrito, mas não despiciendo – quem não conhece o magnífico Jazz (1925), que aqui não figura? – João Paulo Cotrim fala num “desejo de paisagem”, que podemos observar em três telas, uma das quais, pertencente a José Gomes Ferreira, suscitou a este bons versos dum expressionismo brandoniano, já fora de tempo (1981), mas no tempo do quadro. Noutra, uma paisagem com Quixote, tem forçosamente de remeter-nos para o lugar-comum (nosso, não dele) quixotesco de ingénuo idealismo, de acordo com os cépticos ou os cínicos; e adiante surge também, como ilustração, um carvão assombroso de Quixote e Sancho por entre lombadas da obra de Cervantes, publicado na revista Civilização. Foi na imprensa que Stuart se afirmou como o que julgamos ser o maior artista gráfico português da primeira metade do século passado – período, de resto, repleto de bons nomes a trabalhar num tempo ávido por mostrar imagens.

A introdução toca as várias facetas do trabalho stuartino,incluindo as que ficaram na sombra ao fim de um século: pintura, ilustração, cartaz publicitário, capas de livros e partituras, todas à excepção da primeira sofrendo mais aceleradamente o desgaste do tempo, por extinção de actividade ou renovação do revestimento, como é o caso dos livros. E neste particular teremos de citar a capa de Lírios do Monte (1918), título inicial do já referido Gomes Ferreira – que depois eliminará da sua bibliografia, como sucede com muitos escritores relativamente aos textos mais juvenis –, as primeiras edições das novelas de Aquilino Ribeiro, Filhas de Babilónia (1920) e do romance Emigrantes (1928), de Ferreira de Castro, revisitações de A Farsa e os Pobres, de Raul Brandão, coexistindo com o o testemunho pungente de Reinaldo Ferreira, nas Memórias de um Ex-Morfinómano (1933) – além de literatura humorística ou frívola e edições de actualidades, pois o sustento a tal obrigava.

Exposto e ilustrado o artista, segue-se a arrumação temática: os auto-retratos, os quadradinhos, o cartoon, os costumes, a Lisboa stuartina, as mulheres, os tipos mais ou menos populares, as figuras conhecidas, os pobres e marginais, a morte. E porque Stuart é Stuart, ainda na próxima semana continuaremos na companhia deste príncipe, com especiais enfoques: a BD, pois claro, desde muito cedo; a cidade, que aqui se chama Lisboa; a mulher, que Stuart magnifica sempre e como poucos; a atenção que o artista prestou aos pobres e excluídos – que já conhecemos de Renda Barata compilação de 2020 de cartoons publicados no diário anarco-sindicalista A Batalha –; e ainda um Stuart menos risonho e conhecido.

3- A bonomia de Stuart estava afeita aos quadradinhos, pelo que não é de estranhar que também por aí caminhasse abrindo caminho – João Paulo Cotrim observou ter sido ele o primeiro bandadesenhista europeu a recorrer à filactera, o balão que identifica a fala das personagens. Tiras humorísticas e uma série pioneira Quim e Manecas (1915-1953), quase 40 anos de tropelias atrás de diabruras, cuja influência José-Augusto França filiou em Max und Moritz (1865), de Wilhelm Bush, o que nos parece questionável. A haver uma, ela radicará num brilhante sucedâneo da série alemã, os terríveis Hans e Fritz, vulgo Os Sobrinhos do Capitão (1897), de Rudolph Dirks.

Mas como vimos, Stuart faz-se de muito mais do que apenas BD. Grandes escritores debruçaram-se sobre o seu trabalho, no que, para além do talento único, constitui mais um seguro de vida póstuma. A propósito de Lisboa, que aqui merece um capítulo, escreveu Manuel Mendes: “Encarnou a alma da terra que escolheu para viver […] e acabou por melhor a sentir e expressar do que os próprios naturais. Viu tudo, amou e sentiu tudo […], entrou-lhe na alma e lá se instalou como na própria casa.”

Stuart adorava as mulheres, e demonstrava-o gulosamente. Se vemos mundanas, viciadas, prostitutas, também aí estão, sobretudo, as mulheres do povo, dignas, altivas, elegantíssimas. Uma vendedora de fruta aparece-nos cheia de sensualidade e raça, nunca postiça, mas bem real. Stuart conhecia por dentro aquilo de que tratava. E isso estende-se à crítica impiedosa da sociedade doente. Fiquemos com as palavras de Aquilino Ribeiro: “Stuart era um rebelde; mais do que isso, por baixo do seu desmancho de boémio havia um revolucionário, muito senhor de si [...]”. A sua ferocidade enquanto cartoonista social é directamente proporcional à selvajaria da classe dominante.

Ferreira de Castro, por ele três vezes retratado, e cujos romances iriam advogar a revolução social e libertária, irmanava-se com Stuart na repugnância não só da miséria ou dos mecanismos que a perpetuavam, mas também da indiferença com que era aceite e vivida. E por isso escreverá, em 1926: “Mais do que um ilustrador, Stuart Carvalhais é um água-fortista. Na arte portuguesa, ele está, como desenhador, ao lado de Raul Brandão, como literato. E até como este, Stuart repete-se […] como se entendesse que a carranca da vida, enrugada, desgrenhada, há-se sempre reflectir-se num mesmo e imutável espelho.” Veja-se o retrato sombrio de Camilo Castelo Branco, como se possuído por um demónio interior que cedo ou tarde lhe cobrará a dívida do génio; ou o de um mefistofélico Ferreira de Castro (ambos de 1928), num quase sorriso de esgar, como se dali viesse uma ameaça de não deixar pedra sobre pedra, num mundo a derrubar para voltar a construir. Mas ao lado, contudo, uma jazz-band embevecida, olhando para uma Amália ridente... Stuart não é (só) para meninos.

Stuart – A Rua e o Riso

Autor: João Paulo Cotrim

edição: Assírio & Alvim e El Corte Inglés, Lisboa, 2006

«Leitor de BD» #1, #2, #3

domingo, 12 de dezembro de 2021

de A a Z - K, de Krazy Kat (George Herriman, 1910)



Uma gata apaixonada por um rato chamado Ignatz, que corresponde lançando-lhe um tijolo à cabeça, sempre que Ofissa Pupp, um cão-polícia, que ama a felina, não consegue evitá-lo, metendo o rato na cadeia. Durante mais de 40 anos foi assim. Ninguém substituiu Herriman depois da sua morte; parece que não havia ninguém à sua altura. Walt Disney terá dito que sem Krazy Kat não teria havido Mickey. Foi com ela e Ignatz que o antropomorfismo entrou nos quadradinhos.

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quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

'Fatty' Arbuckle




Fatty, le Premier Roi de Hollywood
, de Julien Frey e Nadar. Roscoe Fatty Arbuckle foi o primeiro grande comediante da Meca do Cinema, e protagonista do primeiro escândalo que aí ocorreu. A morte da acriz Virginia Rappe com uma peritonite, após um encontro com Fatty Arbuckle, lançou sobre este a suspeita de agressão sexual, levando-o a tribunal, onde foi absolvido. Porém, o seu nome foi proscrito durante longos 12 anos. Em 29 de Junho de 1933 assina um contrato com a Warner, estava por fim reabilitado. Morreria nessa mesma noite, de um fulminante ataque cardíaco. (Futuropolis)

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domingo, 5 de dezembro de 2021

de A a Z - J, de Jonathan (Cosey, 1976)




Saído de um hospital psiquiátrico após três meses de internamento, sofrendo de amnésia, Jonathan regressa aos Himalaias – o Tibete ocupado, o Nepal, o norte da Índia. E será naquele cenário avassalador que este homem jovem tentará encontrar-se. Uma BD poética.

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quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

de A a Z - Iznogoud (Goscinny & Tabary, 1962)


Quero ser califa no lugar do califa!” A perfídia com requinte oriental instalada na BD. O grão-vizir Iznogoud tudo faz para remover o soberano, porém não foi avisado pelos autores de que ele é apenas uma personagem – embora a mais popular – de uma série intitulada “As Aventuras do Califa Haroun el Poussah”, o indolente nababo que governa os crentes.

«Leitor de BD»

um inferno sobre as ondas




Nascido na Ucrânia, no seio duma família polaca, súbdito do Império Russo, Joseph Conrad (1857-1934) foi um lobo do mar e um grande escritor inglês, cuja cidadania obteve antes dos trinta anos. Enorme ficcionista que nas suas narrativas expõe o ser humano à provação dos elementos, dos outros homens e de si próprio, vai vencendo a passagem do tempo, ao passo que outros autores e respectivas obras se tornam mais mais descorados, como se tomados por uma das nuvens de sal desta BD.

A grandeza de Conrad é também aferida pela permanência dos seus livros junto dos leitores e pelas abordagens que suscita noutros meios conexos com a literatura, como a dramaturgia, o cinema e a BD: romances, tais o O Coração das Trevas (1899) e Lord Jim (1900), os extraordinários contos e novelas de História Inquietas (1898) ou esta Mocidade – Uma Narrativa (escrito também em 1898), Um dos maiores filmes da história do cinema será sempre “Apocalypse Now” (1979), que, partindo de O Coração das Trevas, passou a ser outra coisa, uma obra de Francis Ford Coppola e não um decalque resumido e desinteressante, como tantas vezes sucede quando se trata de meras adaptações.

Interpelado por este texto breve de Conrad – Mocidade – Uma Narrativa – de inspiração autobiográfica, Diniz Conefrey (Lisboa, 1965) tem idêntica atitude diante de uma obra acabada, a que é, quanto a nós, a única artisticamente válida nestas circunstâncias, apropriar-se dela, tornando-a sua, mesmo que parta da evocação pessoal de outro autor.

Judea – título da presente novela gráfica, que é também o nome do barco de Marlowe, o protagonista – relata o que seria uma viagem de Londres a Banguecoque, que acabará por conhecer destino diferente. Entre o figurativo e o abstraccionismo, Conefrey dá-nos imagens fortes em que a materialidade de tripulação e navio se dilui à medida que os elementos constitutivos de uma tempestade ou de um grave incidente que entretanto ocorre, vai conquistando aquela exígua superfície no meio do oceano: o jovem grumete que está ali mesmo ao lado e já não se vê, mal se ouvindo o choro de aflição cortado por rajadas de vento e água; o veleiro prestes a ser engolido pela nuvem de água e sal condensados, progressivamente apagando os seus contornos.

Conefrey, que pertence àquela família de artistas que reflecte sobre o própria obra, escreve nas badanas ser o navio a personagem central desta adaptação – como é notório a partir do título – “poden[do] ser visto como o corpo do escritor”, metáfora aliciante que nos faz pensar outra narrativa marítima breve, também ela uma jóia: O Velho e o Mar (1952), de Ernest Hemingway, e a luta do homem na captura duma espécie de espadarte gigante – combate esse que afinal pode ler-se como alegoria do confronto do autor com a escrita. Neste álbum, Conefrey acrescenta, como Coppola no cinema; e quando se acrescenta algo à obra de um grande como Conrad, tal deve ser devidamente assinalado.


Judea

texto e desenhos: Diniz Conefrey

edição: Pianola Editores, Lisboa, 2016

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segunda-feira, 29 de novembro de 2021

de A a Z - H, de Hagar o Horrível (Dick Browne, 1975)




Víquingue rude, e de pelagem hirsuta, terror de anglos e francos que lhe sofrem a pilhagem, temido por todos, tem pena de que a família não saiba disso: Helga, a mulher, sempre reclamante, e os filhos Honi, adolescente, apaixonada, e Hamlet, um intelectual nada interessado em expedições e saques. Era uma delícia que os jornais ofereciam.

«Leitor de BD»

domingo, 28 de novembro de 2021

uma personagem cheia



Bart “o” Belga montou em Nice dois restaurantes de especialidades gastronómicas do país de Hergé e Franquin (que é também o de Brel, Magritte, Simenon, Yourcenar...), arredondando os proventos com um tráfico modesto de cannabis e um pouco de pó branco, quando calha. Uma vez instalado, teve, porém, de lidar com as exigências da “Trindade”, organização mafiosa que pratica a extorsão, e todos os outros crimes de catálogo, liderada por um velho magnata cuja fortuna se fez alegadamente em torno das corridas de cavalos e apostas, um proxeneta rufia, destinatário de tráfico de carne branca oriundo do Leste, e um empreiteiro que evolui no mundo legal, corrompendo os agentes do Estado. O aviso é feito com um assalto meio simulado a um dos restaurantes, perpetrado por três homens embuçados. Mas ninguém contava que um velho que por lá passara a comprar uma “mitraillette”, típica sanduíche belga, depois de agredido por um dos sicários, neutralizasse todos como se fossem meninos de escola. Trata-se de Vadim Koczinsky, o protagonista do álbum de hoje

Quando os comunistas tomaram o poder em Varsóvia, o jovem Vadim fugiu e alistou-se na Legião Estrangeira, tornando-se atirador de elite. Chegada a idade da reforma e tendo enviuvado, Vadim acomoda-se num lar confortável, graças às poupanças, empregando o remanescente num seguro de vida para o neto, depois de a filha, casada com um indivíduo suspeitoso de traficâncias, ter sucumbido às drogas, algo por que Vadim responsabiliza o genro. Os dias passavam-se amargos mas tranquilos no lar, até que o idoso é notificado que a conta bancária está a zeros, por burla do gestor. Obrigado a deixar a casa de repouso, vendo-se acolhido num albergue para sem-abrigo, ciente de que Sacha ficou sem o seguro de vida, acabará por aceitar a proposta de Bart van Coppens, que a tudo assistira no seu restaurante: “o Belga” não é tipo para deixar-se ficar, e vê no aposentado o homem que irá executar os chefes da “Trindade”. O velho aceita, com condições, e será ainda posto à prova antes de dar conta do trio de bandidos que domina a cidade. O pior são as malditas artrites, que lhe paralisam os dedos de quando em vez.

Monsieur Vadim é um herói inusitado, uma máquina de matar espondilítica, porém com consciência: não é assassino de inocentes, e tem um hábito q ue cumpre religiosamente, a telenovela diária, um pastelão intitulado “As Conchas do Amor”, o que provoca estupefacção, tornando-o alvo de ironia. Como se vê, uma personagem cheia, posta numa situação que não imaginamos consentânea com utentes de lares e centros de dia. O argumento, de Gihef e Didier Mertens, é cru: ajustes de contas com amputações sortidas, curros onde se encerram as jovens mulheres traficadas, forçadas à prostituição; mas não cede a um maniqueísmo fácil: a conversa fortuita de Vadim com um dos homens que no dia seguinte terá na mira é um dos vários bons momentos desta BD. O desenho expressivo, rugoso e com um apurado sentido do movimento de Morgann Tanco, está à altura da escrita de Gihef e Mertens, sendo por sua vez servido na justa medida pela paleta experimentada de Cerise (o casal Cynthia Englebert e Gianluca Carboni).


Monsieur Vadim 1 – Arthrose, Crime & Crustacés

Texto: Gihef e Didier Mertens

Desenhos: Morgann Tanco

edição: Grand Angle, Charnay Les Macôn, 2021

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quinta-feira, 25 de novembro de 2021

de A a Z - G, de Gaston Lagaffe (André Franquin, 1957)




Uma das mais geniais criações da BD, Gaston é funcionário da redacção da revista Spirou, responsável pelo correio. Ninguém sabe quem o contratou e ele também não se lembra. As gaffes são épicas e o expediente para não fazer nada, também. É inventor de inutilidades e pratos deslumbrantes, como o inolvidável bacalhau com morangos.

«Leitor de BD»


segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Brick Bradford, um herói sem tempo


Os primórdios das séries de  ficção científica em BD situam-se muito depois de  escritores como Júlio Verne ou H. G. Wells encerrarem o século XIX anunciando a miríade de caminhos possíveis para as estrelas. Buck Rogers, em 1929, através do traço de Dick Calkins, a partir de um conto de Philip Francis Nowlan, é o primeiro a ganhar as páginas dos quadradinhos. Segue-se Brick Bradford, o herói do livro de hoje, com argumento de William Ritt (1902-1972) e desenhos de Clarence Gray (1901-1957). Nenhum dos dois porém atingirá a aura de Flash Gordon (1934), de Alex Raymond, um dos maiores nomes da 9.ª arte. Lermos um Brick Bradford com os olhos de hoje, esquecendo que os comics eram puro entretenimento publicado nas últimas páginas dos jornais e destinado a todos os públicos, pode ser um exercício de masoquismo, tal o tom naïf e hollywoodesco do argumento. No entanto, Bradford faz parte de um processo que culminará, por exemplo, com uma notável série francesa, madura e complexa, como Valérian (1967), dos franceses Jean-Claude Mézières e Pierre Christin. Brick Bradford está dentro da que é tida como a idade de ouro dos comics americamos (1929-45), devendo-se-lhe também a consolidação de um género nos quadradinhos, sempre apelativo: o das viagens no tempo.

Nesta altura, as narrativas sequenciais sucediam-se indefinidamente, dia após dia, semana após semana, consoante se tratasse de tiras ou páginas dominicais. Chegada a altura de reuni-las em revista ou álbum, era inevitável os referentes narrativos estarem alhures. Por exemplo, Rota é uma "princesa imperial" caída em desgraça e abandonada numa ilha deserta, sem que se saiba a razão. (Uma edição actual traria um resumo do que se passara até aí). Tal como Buck Rogers e Flash Gordon, estamos diante de um trio herói-donzela-sábio. Brick Bradford é um protótipo, pela atitude, do que viria a ser um super-herói. Não tem superpoderes, apenas intrepidez e coragem, e monta ainda a cavalo – o "Chama" –, embora viaje pelo espaço e pelo tempo, graças ao domínio de um elemento chamado "Timex"... Estes périplos recorrentes são um dos atractivos da série: homens de um amanhã longínquo de crânios gigantescos e corpo reduzido (ainda na última semana trouxemos ao "Abecedário" o Esquálidus, de Floyd Gottefredson...), evoluindo dentro de uma bolha, que encerram também as cidades; além de anacronismos sempre saborosos: aztecas e naves espaciais, pilotos com farda tardomedieval, e por aí fora. O cientista amigo de Brick é o bonacheirão Doutor Dramaticus, com aspecto de bonzo tibetano. Sendo amigo do herói é adversário da heroína coadjuvante, deixando o primeiro numa situação desconfortável, embora não hesitante. A(s) história(s) datam de 1945: uma incursão no "hemisfério perdido" (a América), dominado por insectos gigantes, seguindo-se uma perseguição pelo futuro a culminar no ano 1001945 (!)

Brick Bradford

texto: William Riit

desenhos: Clarence Gray:

edição: Editorial Presença, Lisboa, 1976

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domingo, 21 de novembro de 2021

de A a Z - Fantasma / The Phantom (Lee Falk & Ray Moore, 1936)

 



Um espírito que anda, acompanhado por um lobo, a que chama “Diabo”. Um mascarado imortal, assim o julgam todos, menos os pigmeus bandar, junto de quem vive, na Caverna da Caveira. O Fantasma (o Senhor Walker, quando vestido à civil) é o último de uma linhagem que desde há 400 anos jura combater o crime. Nunca se vira nada assim, um justiceiro que inflige o terror à bandidagem. O Batman virá beber aqui.

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quinta-feira, 4 de novembro de 2021

aviões de papel

 




Que fazem dois autores de BD quando pretendem desenvolver uma série de aviação, de aviões percebendo nada? Obviamente, tiram o brevê... Foi o que se passou com Jean-Michel Charlier (1924-1989) e Victor Hubinon (1924-1979), antes de estrearem a primeira aventura do coronel piloto-aviador Buck Danny, Les Japs Attaquent (1947), episódio de Pearl Harbour, no Pacífico, com uma forte inspiração de Terry e os Piratas, de Milton Caniff (1907-1988), terminada no ano anterior e substituída por Steve Canyon, também ele um ás Força Aérea Americana. Buck Danny é um coronel piloto-aviador, que desde cedo contará com a companhia de dois camaradas:  o capitão Tumbler e o tenente Tuckson. Acompanhando o tempo histórico em que cada álbum se publica, trata-se da mais antiga e bem-sucedida série de aviação de guerra da BD franco-belga: 58 álbuns, 40 dos quais assinados por esta dupla.

Livros como o de hoje, Histoires Courtes (1946-1969), destinam-se principalmente aos admiradores das séries e aficionados dos quadradinhos em geral. Compõem-se de episódios breves, curiosidades, pastiches, documentação. Neste caso, criteriosamente editado por Bernard L. Thouvanel, jornalista especializado em temas de aeronáutica, recolhe dez breves histórias, algumas inéditas outras dispersas, para além de fotografias históricas. Mas o leitor comum ficará sempre mais bem servido com a narrativa canónica das 46 páginas. 

O álbum começa com a pré-história de Buck Danny: "Pilotos de turismo" (1946), apenas de Hubinon, um trecho de humor que conta as peripécias por que passavam os candidatos ao brevê numa qualquer escola de aviação. Segue-se "A agonia do 'Bismark'", também de '46, em que ambos desenham: episódio verídico sobre o super-couraçado "Bismark", o mais poderoso vaso de guerra até então construído, que afundara o HMS Hood, orgulho da Royal Navy, na batalha naval do Estreito da Dinamarca (1941), representando uma séria ameaça, como afirmou Churchill: "Para que a Inglaterra sobreviva, custe o que custar, afundem o Bismark!" Os ingleses vão empreender uma perseguição fazendo pagar caro a pesporrência nazi. Pese a juventude dos autores, com 22 anos, o dinamismo narrativo é eficaz, com vinhetas esplêndidas de batalha aéreo-naval, e abundância de plano picado e contrapicado, como seria de esperar. "Duelo no Céu", "Missão Especial" e "Roubaram um Protótipo..." (1955-56) são histórias breves de quatro pranchas, agora já com o coronel Danny, durante a Guerra Fria, em que está sempre por detrás a acção de uma potência estrangeira, nunca nomeada. Se não acrescentam nada a este universo, também não deixam os créditos dos autores por mão alheias, embora Charlier detestasse escrever narrativas curtas por lhe queimarem vários cartuchos passíveis de usar num álbum canónico. Finalmente quatro pequenos episódios de humor e autopastiche: "As horripilantes aventuras de Buck Danny, veterano da U. S. Air Force" (1957); "Duck Flappy - Protótipo X-6432589" (1960); "Missão Especial" e "Uma História Inacreditável" (1969), cereja no topo: em pleno ar, o chefe da esquadrilha comporta-se estranha e perigosamente aos comandos, para espanto dos companheiros: chegados ao solo, Tumbler e Tucker dirigem-se furiosos ao comandante, quando vêem Gaston Lagaffe, o anti-herói criado por Franquin, vestido a preceito, trazendo na mão o manual "Piloto de Caça em Três Lições", e com justificação: uma vez que vira Buck Danny demasiado absorvido pela aventura da página 14, resolvera substituí-lo, naturalmente...

Les Aventures de Buck Danny - Histoires Courtes 1. (1946-1969)

Texto e desenhos: Jean-Michel Charlier e Victor Hubinon.

Edição: Dupuis, Marcinelle, 2020

«Leitor de BD»



segunda-feira, 1 de novembro de 2021

de A a Z - Esquálidus / Eega Beeva (Bill Walsh e Floyd Gottfredson, 1947)


 


Homem do futuro (século XXIV), encontrado fortuitamente por Mickey e Pateta no interior de uma caverna, dormindo no topo de uma estalagmite. De nome completo Pittisborum Psercy Pystachi Pseter Psersimmon Plummer-Push, fala na língua dos pês. De cabeça desproporcional e mãos e pés em que sobressai apenas o polegar e o dedão, tem como uma das características retirar do saiote qualquer objecto, de um dedal a um iate. Bem visto: cérebro enorme para armazenar dados, polegares avantajados para teclar um móvel, resolvido o problema de acumulação de bens de consumo. Seremos felizes no século XXIV.

«Leitor de BD» 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

CRÁS!


Linguagem específica da BD, nada melhor do que uma onomatopeia para dar título a uma revista de quadr(ad)inhos. Nos idos de '74, a Editora Abril, uma das maiores da América Sul, lançou uma edição especial da colecção "Diversões Juvenis", testando o mercado para a receptividade de novos títulos. CRÁS!, em formato europeu, reuniu um punhado de autores representativos dos quadrinhos brasileiros. Quadrinhos que vêm de longe: As Aventuras de Nhô Quim ou Impressões de uma Viagem à Corte (1869), do ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843-1910), assinalam o início da 9.ª Arte no Brasil. Hoje, mesmo com a enorme influência dos comics americanos, o panorama quadrinístico é palpitante, pelo que nos é possível ver, graças também à persistência duns poucos editores portugueses.   

Trata-se de uma edição equilibrada quanto aos géneros e temas, em que o humor prevalece nas suas várias dimensões. As històrinhas de cariz mais infantil estão representadas por "Aragão", um cachorro e a sua criança, da autoria Cesar & Odair, e "Cafuné e Acácio", de Primaggio (também ítalo-brasileiro), sobre um tucano que vive no gorro do dono.   Humor para todos, encontramos nos perfeitos gags animalistas de Waldyr Igayara (o cão Astolfo, a tartaruga Nina e o rato Felisberto); "Olimpo", de Xalberto, põe em situação cómica os deuses gregos; "Zing, Zong, Crunch e o Chomp" de Júlio & Omar, ou o bicho da maçã que não se fica diante de nenhum Guilherme Tell. Pelo meio, “Vavavum”, desenho de Nico Rosso e Carlos Edgard Herrero e texto de Ivan Saindenberg, sobre um piloto de Fórmula 1 que salta no tempo quando mete a sexta velocidade. Noutro registo, “Alex e Cris”, trecho banal de espionagem; e os obrigatórios temas indianista – “A Iara”, de J. Lanzelotti -- e histórico: o tópico do encontro entre navegadores portugueses e indígenas, com desenhos de Ivan Washt Rodrigues e argumento de Saidenberg em “A guerra que não houve”. No domínio do fantástico (de que “Iara” também participa), o luso-brasileiro Jayme Cortez procede a uma recriação do mito de Fausto, numa demonstração dos recursos que fizeram dele um dos maiores nomes da BD dos dois países no século passado.

Regressando ao humor, o melhor vem no fim. “Cactus Kid”, de Renato Canini. Um pistoleiro com aparência de Kirk Douglas e sex appeal que na verdade é Zeca Funesto, um cangalheiro falido, careca e desdentado com o negócio em crise, pois os bandidos estão todos a regenerar-se. Uma pura desbunda pelo artista que (não) assinava as histórias da patota do Zé Carioca em Vila Xurupita. Outra narrativa esplêndida, sem título, e assinada simplesmente por Michele (o ítalo-brasileiro Michele Iacocca), mostra-nos um homenzinho que começa por reivindicar um simples vinheta que lhe enquadre o espaço e termina com a destruição da mesma à bomba pelo próprio locatário, que entretanto encheu o espaço de tudo o que a sociedade de consumo e desperdício facilita (e quem vier depois que fecha a porta). Finalmente “Satanésio”, de Ruy Perotti, um diabo que vem à superfície por falta de hóspedes. O Inferno está à superfície, e o pobre diabo, ultrapassado pela crueldade humana, arranja emprego num circo, e expelir fogo pela boca, pois claro.

«Leitor de BD»

domingo, 24 de outubro de 2021

de A a Z - Dick Tracy (Chester Gould, 1931)


Numa América assolada pelo proibicionismo da Lei Seca e pelo gangsterismo que a originou, o agente da Lei tem de ter cara de poucos amigos, e preparar-se para esmurrar ou disparar, quando for preciso, os patifes cujo fácies nada ficava a dever a James Cagney ou Edward G. Robinson nos seus piores momento.

sábado, 23 de outubro de 2021

o senador Alix




Alix o Intrépido, apareceu em 1948 nas páginas da revista Tintin, mostrando as aventuras de um jovem gaulês, antigo escravo adoptado por um patrício romano. A adesão dos leitores “dos 7 aos 77 anos”, foi imediata, para surpresa do próprio Hergé, em cujos estúdios o ainda jovem autor trabalhava; e em breve Jacques Martin (1921-2010) ganharia a autonomia necessária para consagrar-se inteiramente à sua obra. Alix, principalmente, mas também Lefranc, de que já aqui falámos, entre outros. Até uma idade avançada e com problemas de visão, Martin interveio nos livros, contando também com assistentes que, adoptando-lhe o estilo, continuaram o seu trabalho.

O sucesso de Alix deve-se, quanto a nós, à circunstância de relatar as peripécias de um jovem gaulês na Roma de Júlio César e à arte de narrar de Martin, construindo episódios em que perpassa sempre algo de inusitado. Acresce um grande rigor de investigação, que fez do autor um nome também respeitado pelos historiadores. Características que tentaremos desenvolver quando tratarmos do Alix canónico.

Com dezenas de milhões de álbuns vendidos, as histórias prosseguem, correndo ao lado de uma sequela, Alix Senator (desde 2012), e uma prequela Alix – Origens (2019), este num estilo gráfico inspirado pela manga japonesa, que nos parece muito bem, porém dividindo a crítica. Sempre defendemos que a continuação das séries quando o autor original se retira não deveria cingir-se a uma simples cópia da matriz, mas a partir dela evoluir no que respeita ao argumento, sem traições ao espírito do universo tratado; e quanto aos desenhos, quanto mais marcadamente o novo autor assumir a sua personalidade, maior é o risco, mas também o interesse pelo desafio.

O álbum de hoje, Alix Senator – 1. As Águias de Sangue, vai por aí. Thiery Démarez (Raincy, 1971) afasta-se do estilo da “escola de Bruxelas”, a linha clara, procurando, no entanto, uma reconstituição historicamente credível a exemplo do Alix canónico; se a atitude nos agrada por princípio, a verdade é que o seu estilo, por vezes hiper-realista, não nos preenche. O mesmo não se dirá do argumento de Valérie Mangin (Nancy, 1973), historiadora de formação, especializada em história institucional, e com uma obra extensa de BD, revelando-se conhecedora não só da história de Roma, como do universo de Alix e da arte narrativa específica da BD.

O herói gaulês tornado político é, dobrados os cinquenta anos, senador no início do governo de Augusto, de quem é cunhado. Estamos em 12 a.C., preparando-se o imperador para a investidura como pontífice máximo. O cadáver do anterior dignitário, rival de Augusto, fora encontrado esventrado, os porcos a chafurdarem-lhe as entranhas, diz-se que atacado pelo próprio Júpiter sob a forma de águia. Pouco depois será a vez de Agripa, genro do imperador e seu sucessor designado, a conhecer a mesma sorte, numa conspiração urdida não se sabe por quem. Alix – agora na companhia de Tito, fruto da união com Lídia Octávia, irmã de Augusto, e Khephren, filho do inseparável companheiro egípcio Enak –, procurará perceber o que está por detrás do sucedido, num jogo complexo de incertezas e sombras que recaem sobre a narrativa. O maduro senador Alix vai ao encontro do jovem combativo de outrora.

Alix Senator – 1. As Águias de Sangue

Texto: Valérie Mangin

Desenhos: Thierry Démarez.

Edição: Gradiva, Lisboa, 2021

«Leitor de BD»


quinta-feira, 21 de outubro de 2021

de A a Z - Calvin and Hobbes (Bill Watterson, 1985)




Há um arco de volta perfeita que transporta os sonhos feéricos do Pequeno Nemo 80 anos para a frente, ao encontro do sonhar acordado de Calvin, seu par na marca que imprimiu na história dos comics e na memória de milhões. Deixar a mente voar nos bancos da escola, quando não nos interessa nada do que a professora está para ali a dizer – quem nunca foi o astronauta Spiff ou o Homem Estupendo?... Watterson é um mago que nos abriu os portais da infância, partilhando connosco o segredo que só ele e Calvin conhecem: na verdade, Hobbes é um tigre a sério.

«Leitor de BD»

terça-feira, 19 de outubro de 2021

discurso directo: Yann

Yann, actual argumentista de Thorgal, foi o último a trabalhar com Rosinski, antes de o mestre polaco se retirar. À pergunta sobre como se processava a relação de trabalho entre ambos, Yann responde, em entrevista dada ao mensário L’Immanquable, em 2018: «Grzegorz é uma pessoa muito agradável. […] Procedi da mesma maneira que Jean Van Hamme, ou seja, forneci um argumento que ele compôs segundo o seu critério.» Muitas vezes o argumentista faz o plano de cada prancha, o découpage, dando pouca margem ao desenhador. Com Rosinski, não por capricho, mas por talento desmesurado, tal não seria possível.

«Leitor de BD»

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

heróis improváveis




Na BD sucede, com alguma frequência, uma personagem secundária impôr-se ao autor ou ser adoptada pelo público, disputando com o protagonista o interesse dos leitores: Spirou ou Astérix são bons exemplos: é impossível imaginar este sem Obélix, e primeiro caso, Fantásio subiu mesmo ao cabeçalho, passando a série a apresentar-se como relatando as peripécias de ambos – as aventuras de Spirou e Fantásio. Astérix e Spirou são demasiado correctos e idealizados nas suas qualidades, enquanto Obélix e Fantásio estão cheio de defeitos e isso diverte, até porque vemo-nos ao espelho. O mesmo poderia dizer-se de Tintin e Haddock, Mickey e Donald e outros mais. Uns representam muito do que desejaríamos ser, os outros algo do que realmente somos. Há ainda outros casos curiosos em que personagens vindas do nada tomam conta das séries, relegando os prévios protagonistas por vezes a meros coadjuvantes: Popeye aparece em 1929 em Thimble Theatre, criado uma década antes, tendo Olívia Palito como personagem principal; a figura do livrinho de hoje, Nancy, talvez a criança mais feia dos comics, que destronou e relegou para a insignificância a tia, uma brasa com pinta de pin-up.

Em 1922, Larry Whittington (1903-1942) criou a personagem Fritzi Ritz, uma pura mundana desse período socialmente agitado do pós-Grande Guerra; mas apenas três anos depois, em virtude de disputas de copyright – eram os proprietários dos jornais em que se publicavam estas comic strips quem detinha os direitos de autor, e não os artistas que as criavam –, Whittington foi afastado dando lugar a outro jovem, Ernie Bushmiller (1905-1982). Em 1933, este introduz Nancy na série e pouco depois Sluggo, o amiguinho leal e paciente, inspirando-se Ernie na sua própria infância não muito abonada de filho de imigrantes vivendo no Bronx. Cinco anos mais tarde, em 1938, Nancy passa a protagonista, a tia Fritzi (a tia Glorinha, em português), continua lindíssima, mas remetida ao papel de educadora , nem sempre bem sucedida.

Nancy não é mignonne como a sua contemporânea Luluzinha, nem uma líder como Mônica, ou inteligentemente contestatária tal a Mafalda. Não, Nancy é uma criança caprichosa, comilona e por vezes desagradável e também esperta – talvez a razão do seu sucesso junto do público norte-americano. Entre nós, os miúdos ficaram conhecidos por Tico e Teca, assim chamados pelos brasileiros, nas revistas que aqui chegavam.

O talento de Bushmiller em criar uma situação cómica nas escassas vinhetas de uma tira, fazendo-o com economia de meios, mas grande legibilidade, foi sublinhado pelos estudiosos e pelos colegas de profissão. Autores como Wally Wood e Art Spiegelman expressaram a admiração pelo trabalho deste veterano, e no ensaio How to Read Nancy? (1988), os autores, Paul Karasik e Mark Newgarden, evocam o minimalismo de Mies van der Rohe a propósito da composição das tiras diárias de Nancy, acrescentando que elas são o modelo mais perfeito das características que deve apresentar uma tira de quadradinhos: equilíbrio, simetria, economia....


Tico e Teca – Especial

autor: Ernie Bushmiller

edição: Idéia Editorial, São Paulo, 1976

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