quinta-feira, 29 de julho de 2021

antes do esquecimento


A Lua está em colisão com a Terra, e, na iminência do fim, a autora dá-nos formas inesperadas de aguardar Apocalipse: a merceeira preocupada em vender a última lata de feijões, a conservadora de museu indecisa sobre quais as obras a salvar, crianças abandonadas acolhidas por um estilista, jovens que se apaixonam numa Festa do Fim do Mundo... Avant l'Oubli, de Lisa Blumen, edição L'Employé du Moi, Bruxelas, 2021.

«Leitor de BD»


domingo, 25 de julho de 2021

polipolar


E de repente, quando estávamos a conversar com os nossos botões, damos por nós no corpo de outra pessoa, a sentir o que ela sente, para, sem aviso, voltarmos ao corpo original. Confusos? Também nós. Mas é uma maluquice de traço crumbiano proposta por Olivier Texier: Polypolaire, L'Association, Paris, 2021.

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sexta-feira, 23 de julho de 2021

o regresso do Distribuidor

 


Le Convoyeur (“A minha palavra é a minha lei”, o seu mote), personagem duma época em que um misterioso vírus corroeu todo o metal, e que aceita qualquer missão, desde que o contratante aceite engolir um ovo que aquela lhe oferece, está de regresso com um segundo tomo: La Cité des Milles Fleche. Aqui vais defrontar-se como uma inimiga, “a Caçadora”, porém ambos terão que unir esforços quando se encontram na corte do Conde d'Arcasso, onde impera a crueldade e a depravação. De Dimitri Armand e Tristan Roulot, edição Le Lombard; Bruxelas. 2021.

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quarta-feira, 21 de julho de 2021

Maurício de Sousa: outros mundos


Certo dia, por volta de 1970, um miúdo saía com a avó da tabacaria do Cruzeiro, no Estoril, levando uma revista aos quadradinhos com personagens desconhecidas. Na capa, um elefante verde bonacheirão servia de árvore de Natal, enquanto umas crianças, mais ou menos da sua idade, se divertiam a colocar gambiarras coloridas em torno do paquiderme. Era uma Mônica, com acento circunflexo, e lá dentro, universos diferentes, posto que aparentemente menos fantasiosos que uma Patópolis ou a Bedrock dos Flintstones. Começado o folheio, rapaz emigrou a salto e a salvo das chatices do universo adulto, e por lá foi ficando.

Maurício de Sousa (Santa Isabel, SP, 1935) é um criador de mundos, desde que em 1959 se estreou na paulista Folha da Manhã, e a capa da revista, que o miúdo guardou, representava uma espécie de crossover de dois dos habitats mauricianos: a Turma da Mônica, a menina dona da rua, de incisivos salientes, vestido vermelho e um eterno coelho de peluche com que punha k.o. os rapazes que a desafiavam – Cebolinha, cinco fios de cabelo, trocando os erres pelos eles; Cascão, alérgico a água, a glutona Magali, Franjinha, um pouco mais velho, dono do Bidu, um cão azul, Zé Luís, caixa d'óculos e engenhocas, entre outros – e Jotalhão, o protagonista da Turma da Mata, juntamente com Raposão, Coelho Caolho (118 filhos), Tarugo, tartaruga míope numa carapaça descapotável, Rita, a formiga apaixonada por Jotalhão, o Rei Leonino, num ambiente de fábula que não se esquece. Acresça-se Chico Bento, um menino caipira, versão benigna e infantil do inesquecível Jeca Tatu, de Monteiro Lobato; os hippies do momento, Rolo e Tina; Horácio, um pequeno tiranossauro meditabundo; Piteco e Tuga, um casal pré-histórico; e o Astronauta, viajante solitário pelo Cosmos, outra das suas grandes criações, foram a base para Maurício se tornar uma espécie de Walt Disney brasileiro, com o seu merchandising, os seus parques de diversões, a sua produção em série.

Do rol inicial falta referir a Turma do Penadinho, estrela do livro de hoje. Surgido em 1963, contracenando com Cebolinha, e então chamado Fantasminha, Maurício muda-lhe o nome e o cenário: lugar para personagens do outro mundo é o cemitério, e com ele outros seres, não de terror, mas de “terrir”, como se adverte na contracapa: Cranícola, um verdadeiro crânio, Muminho, espécime do Antigo Egipto, Dona Morte, de ar compassivo e gadanha ao ombro, os inevitáveis Zé Vampir, Lobi e Frank, entre outros. As Melhores Tiras do Penadinho coligem pequenas histórias recentes, nas quais, por entre muitas referências especificamente brasileiras, do folclore (a Mula sem cabeça), a ocorrência episódica dum vocabulário espírita ou um quotidiano violento que todos conhecemos, se brinca com o que de mais sério e assustador impende sobre as crianças: a morte. Fazer com que esbocem sorrisos em matéria tão dramática e traumatizante é sem dúvida um feito.


As Melhores Tiras do Penadinho, vol. 1

autor: Maurício de Sousa

edição: Maurício de Sousa Editora e Panini Books, São Paulo, 2008

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segunda-feira, 19 de julho de 2021

Alix, senador


Por mais de 60 anos, entre 1948 e 2009, só ou, já no fim, acompanhado, Jacques Martin (1921-2010) assinou para gáudio de historiadores presentes e futuros, e também para os não-iniciados, as aventuras de Alix Graccus, um jovem gaulês escravo tornado filho adoptivo de Honorus Galla, amigo de Júlio César. Alix terá um filho, Tito, com Lídia Octávia, irmã de Augusto. Está dado o mote para a continuação da série, agora Alix com outra idade, 50 anos, e noutro patamar, o de senador. Em As Águias de Sangue, o primeiro tomo, com a pax romana estabelecida, o estranho e violento assassínio de Agripa, genro do imperador, vem perturbar o optimismo que se vivia na cidade eterna. O argumento é de Valérie Mangin, também historiadora, e desenhos de Thierry Démarez. Edição Gradiva, Lisboa, 2021.

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domingo, 18 de julho de 2021

Beethoven, o insubmisso



Régis Penet mostra-nos um Ludwig de 36 anos, seguro do seu génio e valor. Estamos em 1806, o ano em que termina a sinfonia Eroica e compõe o concerto para piano #4. Os franceses ocupam a Áustria, e o Príncipe Lichnowsky, seu anfitrião, quer receber com pompa o oficialato napoleónico, mostrando-lhes de que é feito um aristocrata austríaco, e pede ao compositor que toque ao jantar. Este não só recusa o pedido do amigo e protector, como se dirige aos ocupantes, pedindo que transmitam aos franceses que há ainda um homem livre na Áustria, sem carregar nenhum título consigo. Edição La Boite à Bulles, 2021.

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quinta-feira, 15 de julho de 2021

do homem eterno


Na meia-idade, Russell ia mudar de rumo, não por capricho ou prémio da lotaria, mas por o seu trabalho tornar-se obsoleto, portanto dispensável. Consigo trazia uma nova razão de vida: Bennett, órfão de um amigo, com atraso mental, de quem se propôs cuidar.

Por que razão continua o western a atrair tanta gente, nas mais díspares latitudes? O que leva dois franceses a contar a história de um vaqueiro habituado a conduzir manadas até aos matadouros de Chicago, que se prepara para ficar sem trabalho com o advento do caminho-de-ferro? Talvez nunca como até então na História, o ser humano estivesse tão entregue a si próprio enquanto indivíduo que se autodetermina, gozando de autonomia moral e intelectual, como no Oeste americano de há século e meio; mas também é difícil encontrar maior exposição e vulnerabilidade. Não por acaso estamos no cenário do “cowboy solitário”. Quem queria seguir com a vida, sem atropelar ninguém, tinha a religião como guia ético e consolo espiritual; e também a lei, se fosse preciso, a indicar os interditos. E tinha também mais: uma arma, suficientemente portátil para com ela andar em permanência, servindo tanto a audazes como a medrosos, pelo aparente conforto de protecção. Este individualismo, que muda tudo, confronta-se com um espaço natural desmedido e bravio; defronta o Outro, os nativos, diferentes e ininteligíveis ao primeiro contacto; e ainda os outros seus semelhantes, também eles munidos de instinto de conservação, além de porte de arma. No limite, o encarar de si próprio, quando a jornada parece prosseguir, sem esperar quem é apeado. E o que há a dizer de novo sobre cowboys, pistoleiros, garimpeiros, caçadores de peles, xerifes, cavalaria? Não foi já tudo dito, mostrado, repisado? Questões sem grande sentido, pois nada foi referido ou mostrado da forma que o argumentista Jerôme Félix e o desenhador Paul Gastine o fazem no álbum de hoje. Um verdadeiro autor não prescinde da própria voz; e sendo própria, a voz, é por isso única, e então tudo é novo porque nunca foi comunicado exactamente daquele modo.

Com mestria narrativa e com um desenho realista enriquecido por múltiplos pormenores e um tratamento de cores notável, O Último Homem… mostra-nos sem pudor como os seres humanos, de ordinário ocupados em viver, mediante a ocasião que se ofereça e o livre arbítrio de que dispõem, podem dar-se céu e inferno, a si e aos outros, levantando questões que são do momento – quanto custa uma consciência; quanto vale a vida dum homem? –, mas também as eternas: viver, para quê?; o que é viver?...

Chegados ao fim desta crónica, parece que mal falámos da narrativa. A verdade é que só dela falámos.


O Último Homem

texto: Jerôme Félix

desenhos e cor: Paul Gastine

edição: Gradiva, Lisboa, 2021

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quarta-feira, 14 de julho de 2021

O Poe de Corben...


Richard Corben (1940-2020), autor de matriz bem americana, mas que bebeu da BD europeia, via Métal Hurlant / Heavy Metal, assinou trabalho multifacetado que passou também por adaptações de obras de Ray Bradbury, H. P. Lovecraft, Edgar Allan Poe. A partir deste, surge uma nova edição de Espíritos dos Mortos, num total de 16 histórias, incluindo uma nova versão de O Homem da Multidão. Edição G-Floy, 2021.

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terça-feira, 13 de julho de 2021

...e «Os Miseráveis« de Salch.


Diferente é a adaptação de Os Miseráveis de Victor Hugo por Éric Salch, leitura e reinterpretação iconoclasta de um clássico da literatura mundial, que é também e seguramente uma outra forma de admiração e quantas vezes mais interessante homenagem. Jean Valjean, Cosette e Javert como nunca os víramos. Salch, Les Misérables, edição Glénat, Grenoble, 2021.

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domingo, 11 de julho de 2021

'A Má-Sorte de Thomas Shaper'


 É o subtítulo de primeiro tomo de Jukebox Motel, de Tom Graffin, a partir da sua novela homónima, e desenhos de Marie Duvoisin. Estados Unidos '67, notado no meio underground, e por um encomendador anónimo que lhe faz exigências absurdas, Shaper refugia-se em meio redneck para trabalhar, mas em apuros. Pelo meio, conflito com o pai e relação confusa com a companheira. As agruras da criação, com aparições especiais de Andy Warhol e Johnny Cash.. Edição Grand Angle, 2021.

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quarta-feira, 7 de julho de 2021

personagens de carne e sonho


 Duas órbitas vazadas miram-nos (!), na primeira vinheta... Tons escuros e um azul cinza por detrás, compõem a impressão soturna que nos é oferecida. O plano vai-se abrindo nos quadradinhos seguintes, mostrando num pardieiro, paredes de pedra musgosas e um raio de luz invadindo o espaço por uma janela diminuta. Aquelas órbitas pertenciam a uma foca cuja pele se dependura nas estacas interiores. Ao fundo, uma jaula onde se vislumbra um vulto humano acocorado. É Leuve, filha de Thorgal Aergison, raptada por marinheiros-comerciantes das Ilhas Ferozes – também conhecidas por Faroé –, situadas entre a Escócia e a Islândia.

Na prancha 04, em analepse, Thorgal olha embevecido a graça da filha, muito jovem adolescente caminhando rapidamente para mulher. Ao 38.º álbum, este falso víquingue goza o prazer da família reunida, ao fim de mil-e-uma peripécias a que vimos assistindo, desde que em 1977 se estreou nas páginas da revista Tintin, com desenhos de Grzegorsz Rosínski e argumento de Jean Van Hamme. Na prancha 08, uma vinheta de margem a margem mostra-nos Thorgal de semblante carregado ao comando de um knörr, no Mar do Norte, no encalço – na companhia do filho, Jolan – da filha, que já sabe estar nas mãos de Grimur, chefe da aldeia de Mikladalur, na ilha de Kolsoy. Entra então na narrativa lenda da mulher-foca, a sélquia: a uma data certa, as sélquias saíam do mar à noite, despiam as peles de foca e dançavam nuas, revelando esplêndidos corpos femininos. Um pescador escondido, que desviara a pele de uma delas, impedindo-a assim de regressar ao mar, leva-a para casa, tornando-a sua mulher, até um dia em que esta ela encontra a pele e foge. No seu habitat forma a família, que será destruída pelos habitantes de Mikladalur, numa surtida às focas. A vingança da sélquia é terrível, e uma maldição atrai os homens para os penhascos, lançando-os depois ao mar e à morte. Nem a construção de uma gigantesca estátua em bronze consegue desfazer a praga. Ao contrário, os barcos atraídos por um remoinho desfazem-se contra as rochas. Por isso, na época de acasalamento, os habitantes de Kalsoy, procedem ao massacre de todas as focas, esperando acabar com aquele sacrifício de homens. Thorgal e Jolan, logram contudo transpor a passagem guardada pela sélquia de bronze, e quando chegam a Mikladalur vêm a água do mar tingida de vermelho.

O engenho de Van Hamme, a mestria de Rosínski e o encontro da história com o maravilhoso das lendas nórdicas – a história encerra com os corvos de Odin, Huginn e Muninn, que informam o deus dos passos do protagonista – e um pouco de ficção científica, fez de Thorgal uma das séries mais populares da BD. Van Hamme largou-a em 2006, passando por Yves Sente, Xavier Dorison e Yann, a nata dos argumentistas actuais. Rosínski, fará o mesmo dez anos mais tarde, entregando a sua personagem a Fred Vignaux, não deixando, contudo, de supervisionar o trabalho do continuador.


Thorgal – La Selkie

texto: Yann

sesenhos: F. Vignaux

edição: Le Lombard, Bruxelas, 2020



domingo, 4 de julho de 2021

reflexões




Um Trovão no Caminho e Outras Histórias de ficção científica por António Rocha, uma estreia na BD portuguesa que reflecte sobre experiências como a morte, a perda, ausência e a solidão. Edição Escorpião Azul, Lisboa, 2021.

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quinta-feira, 1 de julho de 2021

estórias "para rapazes"


 BD não é só feita de Tintin e Príncipe Valente, Peanuts e Gaston Lagaffe, Corto Maltese ou Calvin & Hobbes. Muito do encanto que determinadas publicações tiveram, e que se mantém, sem nostalgia, décadas após o encerramento, deve-se também a uma quantidade de séries secundárias que preenchiam as revistas, criando uma aura que era partilhada pelos leitores. Por cada obra-prima, há uma infinidade de trabalhos correctos, que contribuem decisivamente para a consistência de uma visão global do trabalho de um determinado autor ou de um período. Alguns, sendo um recurso para tapar-buracos ao tempo em que eram publicados, hoje são vistos como fragmentos indissociáveis de uma época.

É o caso da série e do álbum que hoje aqui trazemos: Os 3 A – Os Piratas do Nevoeiro. André, Alain e Aldebert (Al, para os amigos) são três jovens escuteiros de espírito aventuroso, surgidos em 1963 nas páginas da revista Tintin belga, com desenhos de Mittéï (1932-2001) e texto de um certo M. Vaseur, pseudónimo de um nome sonante da BD, A.-P. Duchâteau (1925-2020), o argumentista de Ric Hochet, o repórter-detective.

A história, simples e movimentada, conta-se de uma penada: convidados por um armador, tio de Alain, a passar umas semanas a bordo do arrastão “Le Hardi” numa companha na costa da Islândia, são surpreendidos por um cargueiro à deriva, aparentemente sem vivalma. Alcançado o navio, deparam-se com a “Jolly Roger” hasteada – a característica bandeira dos piratas – e dão com a tripulação presa no porão. Chegados à vila piscatória de Slandag, verificam que não se fala doutra coisa, com um clima de suspeição que se abate entre os homens do mar, em especial sobre os mestres dos rebocadores, que beneficiam financeiramente com o resgate dos barcos; e para mais, o modus operandi destes piratas modernos denuncia uma violência inquietante.

Típica série “para rapazes”, como então se dizia, em não se vê uma figura feminina – muito medo das mulheres tinha a católica Bélgica; será preciso esperar pelo Maio de 68 para maior arejamento –, o argumento de Duchâteau é mais do que escorreito; mas a estrela aqui é Mittéï, desenhador em processo de revalorização, que algo estranhamente optará essencialmente pelos quadradinhos humorísticos, como o Incrível Désiré, sendo um dos vários autores que pegaram em Modeste et Pompon, após Franquin ter abandonado a revista Tintin, regressando à Spirou. Mittéï (Jean Thomas Toussaint Mariette), na altura assistente de Tibet em Ric Hochet, apresenta um trabalho empolgante, no dinamismo do desenho e nos enquadramentos das vinhetas. A edição portuguesa, já com mais de meio século, é um desgraça: má impressão e ausência de qualquer referência aos autores. Com raras excepções – como então a Verbo, a União Gráfica ou a Bertrand, orientada por Vasco Granja –, a edição de BD estava geralmente entregue aos bichos.


Os 3 A – Os Piratas do Nevoeiro

texto: M. Vaseur [A.-P. Duchâteau]

desenhos: Mittéï

edição: Editorial Íbis, Lisboa. s.d. [1970]

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