quarta-feira, 27 de outubro de 2021

CRÁS!


Linguagem específica da BD, nada melhor do que uma onomatopeia para dar título a uma revista de quadr(ad)inhos. Nos idos de '74, a Editora Abril, uma das maiores da América Sul, lançou uma edição especial da colecção "Diversões Juvenis", testando o mercado para a receptividade de novos títulos. CRÁS!, em formato europeu, reuniu um punhado de autores representativos dos quadrinhos brasileiros. Quadrinhos que vêm de longe: As Aventuras de Nhô Quim ou Impressões de uma Viagem à Corte (1869), do ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843-1910), assinalam o início da 9.ª Arte no Brasil. Hoje, mesmo com a enorme influência dos comics americanos, o panorama quadrinístico é palpitante, pelo que nos é possível ver, graças também à persistência duns poucos editores portugueses.   

Trata-se de uma edição equilibrada quanto aos géneros e temas, em que o humor prevalece nas suas várias dimensões. As històrinhas de cariz mais infantil estão representadas por "Aragão", um cachorro e a sua criança, da autoria Cesar & Odair, e "Cafuné e Acácio", de Primaggio (também ítalo-brasileiro), sobre um tucano que vive no gorro do dono.   Humor para todos, encontramos nos perfeitos gags animalistas de Waldyr Igayara (o cão Astolfo, a tartaruga Nina e o rato Felisberto); "Olimpo", de Xalberto, põe em situação cómica os deuses gregos; "Zing, Zong, Crunch e o Chomp" de Júlio & Omar, ou o bicho da maçã que não se fica diante de nenhum Guilherme Tell. Pelo meio, “Vavavum”, desenho de Nico Rosso e Carlos Edgard Herrero e texto de Ivan Saindenberg, sobre um piloto de Fórmula 1 que salta no tempo quando mete a sexta velocidade. Noutro registo, “Alex e Cris”, trecho banal de espionagem; e os obrigatórios temas indianista – “A Iara”, de J. Lanzelotti -- e histórico: o tópico do encontro entre navegadores portugueses e indígenas, com desenhos de Ivan Washt Rodrigues e argumento de Saidenberg em “A guerra que não houve”. No domínio do fantástico (de que “Iara” também participa), o luso-brasileiro Jayme Cortez procede a uma recriação do mito de Fausto, numa demonstração dos recursos que fizeram dele um dos maiores nomes da BD dos dois países no século passado.

Regressando ao humor, o melhor vem no fim. “Cactus Kid”, de Renato Canini. Um pistoleiro com aparência de Kirk Douglas e sex appeal que na verdade é Zeca Funesto, um cangalheiro falido, careca e desdentado com o negócio em crise, pois os bandidos estão todos a regenerar-se. Uma pura desbunda pelo artista que (não) assinava as histórias da patota do Zé Carioca em Vila Xurupita. Outra narrativa esplêndida, sem título, e assinada simplesmente por Michele (o ítalo-brasileiro Michele Iacocca), mostra-nos um homenzinho que começa por reivindicar um simples vinheta que lhe enquadre o espaço e termina com a destruição da mesma à bomba pelo próprio locatário, que entretanto encheu o espaço de tudo o que a sociedade de consumo e desperdício facilita (e quem vier depois que fecha a porta). Finalmente “Satanésio”, de Ruy Perotti, um diabo que vem à superfície por falta de hóspedes. O Inferno está à superfície, e o pobre diabo, ultrapassado pela crueldade humana, arranja emprego num circo, e expelir fogo pela boca, pois claro.

«Leitor de BD»

domingo, 24 de outubro de 2021

de A a Z - Dick Tracy (Chester Gould, 1931)


Numa América assolada pelo proibicionismo da Lei Seca e pelo gangsterismo que a originou, o agente da Lei tem de ter cara de poucos amigos, e preparar-se para esmurrar ou disparar, quando for preciso, os patifes cujo fácies nada ficava a dever a James Cagney ou Edward G. Robinson nos seus piores momento.

sábado, 23 de outubro de 2021

o senador Alix




Alix o Intrépido, apareceu em 1948 nas páginas da revista Tintin, mostrando as aventuras de um jovem gaulês, antigo escravo adoptado por um patrício romano. A adesão dos leitores “dos 7 aos 77 anos”, foi imediata, para surpresa do próprio Hergé, em cujos estúdios o ainda jovem autor trabalhava; e em breve Jacques Martin (1921-2010) ganharia a autonomia necessária para consagrar-se inteiramente à sua obra. Alix, principalmente, mas também Lefranc, de que já aqui falámos, entre outros. Até uma idade avançada e com problemas de visão, Martin interveio nos livros, contando também com assistentes que, adoptando-lhe o estilo, continuaram o seu trabalho.

O sucesso de Alix deve-se, quanto a nós, à circunstância de relatar as peripécias de um jovem gaulês na Roma de Júlio César e à arte de narrar de Martin, construindo episódios em que perpassa sempre algo de inusitado. Acresce um grande rigor de investigação, que fez do autor um nome também respeitado pelos historiadores. Características que tentaremos desenvolver quando tratarmos do Alix canónico.

Com dezenas de milhões de álbuns vendidos, as histórias prosseguem, correndo ao lado de uma sequela, Alix Senator (desde 2012), e uma prequela Alix – Origens (2019), este num estilo gráfico inspirado pela manga japonesa, que nos parece muito bem, porém dividindo a crítica. Sempre defendemos que a continuação das séries quando o autor original se retira não deveria cingir-se a uma simples cópia da matriz, mas a partir dela evoluir no que respeita ao argumento, sem traições ao espírito do universo tratado; e quanto aos desenhos, quanto mais marcadamente o novo autor assumir a sua personalidade, maior é o risco, mas também o interesse pelo desafio.

O álbum de hoje, Alix Senator – 1. As Águias de Sangue, vai por aí. Thiery Démarez (Raincy, 1971) afasta-se do estilo da “escola de Bruxelas”, a linha clara, procurando, no entanto, uma reconstituição historicamente credível a exemplo do Alix canónico; se a atitude nos agrada por princípio, a verdade é que o seu estilo, por vezes hiper-realista, não nos preenche. O mesmo não se dirá do argumento de Valérie Mangin (Nancy, 1973), historiadora de formação, especializada em história institucional, e com uma obra extensa de BD, revelando-se conhecedora não só da história de Roma, como do universo de Alix e da arte narrativa específica da BD.

O herói gaulês tornado político é, dobrados os cinquenta anos, senador no início do governo de Augusto, de quem é cunhado. Estamos em 12 a.C., preparando-se o imperador para a investidura como pontífice máximo. O cadáver do anterior dignitário, rival de Augusto, fora encontrado esventrado, os porcos a chafurdarem-lhe as entranhas, diz-se que atacado pelo próprio Júpiter sob a forma de águia. Pouco depois será a vez de Agripa, genro do imperador e seu sucessor designado, a conhecer a mesma sorte, numa conspiração urdida não se sabe por quem. Alix – agora na companhia de Tito, fruto da união com Lídia Octávia, irmã de Augusto, e Khephren, filho do inseparável companheiro egípcio Enak –, procurará perceber o que está por detrás do sucedido, num jogo complexo de incertezas e sombras que recaem sobre a narrativa. O maduro senador Alix vai ao encontro do jovem combativo de outrora.

Alix Senator – 1. As Águias de Sangue

Texto: Valérie Mangin

Desenhos: Thierry Démarez.

Edição: Gradiva, Lisboa, 2021

«Leitor de BD»


quinta-feira, 21 de outubro de 2021

de A a Z - Calvin and Hobbes (Bill Watterson, 1985)




Há um arco de volta perfeita que transporta os sonhos feéricos do Pequeno Nemo 80 anos para a frente, ao encontro do sonhar acordado de Calvin, seu par na marca que imprimiu na história dos comics e na memória de milhões. Deixar a mente voar nos bancos da escola, quando não nos interessa nada do que a professora está para ali a dizer – quem nunca foi o astronauta Spiff ou o Homem Estupendo?... Watterson é um mago que nos abriu os portais da infância, partilhando connosco o segredo que só ele e Calvin conhecem: na verdade, Hobbes é um tigre a sério.

«Leitor de BD»

terça-feira, 19 de outubro de 2021

discurso directo: Yann

Yann, actual argumentista de Thorgal, foi o último a trabalhar com Rosinski, antes de o mestre polaco se retirar. À pergunta sobre como se processava a relação de trabalho entre ambos, Yann responde, em entrevista dada ao mensário L’Immanquable, em 2018: «Grzegorz é uma pessoa muito agradável. […] Procedi da mesma maneira que Jean Van Hamme, ou seja, forneci um argumento que ele compôs segundo o seu critério.» Muitas vezes o argumentista faz o plano de cada prancha, o découpage, dando pouca margem ao desenhador. Com Rosinski, não por capricho, mas por talento desmesurado, tal não seria possível.

«Leitor de BD»

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

heróis improváveis




Na BD sucede, com alguma frequência, uma personagem secundária impôr-se ao autor ou ser adoptada pelo público, disputando com o protagonista o interesse dos leitores: Spirou ou Astérix são bons exemplos: é impossível imaginar este sem Obélix, e primeiro caso, Fantásio subiu mesmo ao cabeçalho, passando a série a apresentar-se como relatando as peripécias de ambos – as aventuras de Spirou e Fantásio. Astérix e Spirou são demasiado correctos e idealizados nas suas qualidades, enquanto Obélix e Fantásio estão cheio de defeitos e isso diverte, até porque vemo-nos ao espelho. O mesmo poderia dizer-se de Tintin e Haddock, Mickey e Donald e outros mais. Uns representam muito do que desejaríamos ser, os outros algo do que realmente somos. Há ainda outros casos curiosos em que personagens vindas do nada tomam conta das séries, relegando os prévios protagonistas por vezes a meros coadjuvantes: Popeye aparece em 1929 em Thimble Theatre, criado uma década antes, tendo Olívia Palito como personagem principal; a figura do livrinho de hoje, Nancy, talvez a criança mais feia dos comics, que destronou e relegou para a insignificância a tia, uma brasa com pinta de pin-up.

Em 1922, Larry Whittington (1903-1942) criou a personagem Fritzi Ritz, uma pura mundana desse período socialmente agitado do pós-Grande Guerra; mas apenas três anos depois, em virtude de disputas de copyright – eram os proprietários dos jornais em que se publicavam estas comic strips quem detinha os direitos de autor, e não os artistas que as criavam –, Whittington foi afastado dando lugar a outro jovem, Ernie Bushmiller (1905-1982). Em 1933, este introduz Nancy na série e pouco depois Sluggo, o amiguinho leal e paciente, inspirando-se Ernie na sua própria infância não muito abonada de filho de imigrantes vivendo no Bronx. Cinco anos mais tarde, em 1938, Nancy passa a protagonista, a tia Fritzi (a tia Glorinha, em português), continua lindíssima, mas remetida ao papel de educadora , nem sempre bem sucedida.

Nancy não é mignonne como a sua contemporânea Luluzinha, nem uma líder como Mônica, ou inteligentemente contestatária tal a Mafalda. Não, Nancy é uma criança caprichosa, comilona e por vezes desagradável e também esperta – talvez a razão do seu sucesso junto do público norte-americano. Entre nós, os miúdos ficaram conhecidos por Tico e Teca, assim chamados pelos brasileiros, nas revistas que aqui chegavam.

O talento de Bushmiller em criar uma situação cómica nas escassas vinhetas de uma tira, fazendo-o com economia de meios, mas grande legibilidade, foi sublinhado pelos estudiosos e pelos colegas de profissão. Autores como Wally Wood e Art Spiegelman expressaram a admiração pelo trabalho deste veterano, e no ensaio How to Read Nancy? (1988), os autores, Paul Karasik e Mark Newgarden, evocam o minimalismo de Mies van der Rohe a propósito da composição das tiras diárias de Nancy, acrescentando que elas são o modelo mais perfeito das características que deve apresentar uma tira de quadradinhos: equilíbrio, simetria, economia....


Tico e Teca – Especial

autor: Ernie Bushmiller

edição: Idéia Editorial, São Paulo, 1976

«Leitor de BD»

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

de A a Z - Batman (Bob Kane & Bill Finger, 1939)




Ver os pais assassinados or ladrões de rua: mais do que vingança Bruce Wayne, nascido em berço de ouro, quer tirar desforço do maldito acaso. Alfred é o mordomo que funciona quase como ump tutor, Gordon é o comissário impoluto mas complacente. O milionário playboy esconde o magnífico Batman, único, inigualável. Homem-morcego, actua de noite e o seu vislumbre inflige o pavor a bandidos semelhantes aos que o deixaram órfão nessa Nova Iorque negra que é Gotham City. Por isso, os inimigos de Batman estão para lá destes assalta-becos, pilha-galinhas urbanos; são criaturas hórridas – Joker, o Pinguim... –, inquilinos do asilo Arkham, expressões de terror simétricas dessa permanente cicatriz que deambula no breu dos arranha-céus.

Citação: «Batman é maior do que a soma dos seus ilustradores.» Jacques Sadoul, 93 Ans de BD (1989) – referindo-se a Kane, Adams, Miller, Wrightson e todos os outros.

«Leitor de BD»

terça-feira, 12 de outubro de 2021

coboiadas



Uma capa minimalista que pouco diz sobre o que vai no seu interior, é a face do primeiro tomo de Gus, de Christophe Blain (Argenteuil, 1970), originalmente publicado em 2007: um cowboy de aspecto grotesco e nariz de Pinóquio em potência máxima, parecendo lançar-se sobre algo (uma sela, por exemplo), com olhos que não são de fiar. Abre-se, e se desconhecêssemos o autor, que é o mesmo de Isaac o Pirata, perceberíamos então que não se trata de histórias para meninos de bibe. Gus, Clem e Gratt formam uma quadrilha de ladrões de bancos e diligências. Amigos leais entre si, não têm pejo em despachar para a terra da verdade qualquer que se lhe atravesse ao caminho. Brigões perigosos, a maior fraqueza está nas “gajas”... Após cada assalto, há um banho reparador numa casa de meninas, que antecede a acção com as ditas. Porém...

Versando sobre diversos tipos de mulheres, o livro é escrito e desenhado por um homem e fala-nos também de homens e da sua obsessão primeira ou principal: como lidar (com) as mulheres quando o propósito é levá-las para a cama. Estes patifórios ficam a perceber que a última palavra é sempre delas. Gus é o mais cómico deste trio: um pinga-amor, cheio de dinamismo para a conquista, ficando invariavelmente a ver navios; Gratt é o mais tímido e gentil, o que lhe vale alguma coisa; Clem, por fim, homem de família, surge ligado às mulheres mais interessantes de todas quantas por aqui desfilam. Vamos a elas: Isabella, uma fixação antiga, é a que espicaça e nunca se entrega, pobre Gus, que terá de orientar o longo nariz para outro azimute. Depois a mulher sem nome, tão desejável, que se deixa admirar enquanto faz tempo numa estação de muda de cavalos, traz-nos à memória a milady do deslumbrante Cesário Verde: “Milady, é perigoso contemplá-la, / Quando passa aromática e normal, / Com seu tipo tão nobre e tão de sala, / Com seus gestos de neve e de metal.” Melanie e Lucy são a leveza da inconsistência que pouco ou nada acrescenta; tê-las ou não é mais ou menos irrelevante, como elas bem sabem e assim se dão bem. Depois, a poetisa chanfrada, com cremes e idade a mais; Gisella, a pintora madura ricamente casada e senhora da própria agenda; ou ainda a mal casada e não lá muito cheirosa Linda McCormick, mulher do juiz, que se apaixona por cada amante, nascida para carpir desilusões. E ainda as baristas e as prostitutas, que fazem o mundo girar. As belas figuras deste cortejo são Ava, a mulher de Clem, esposa leal, que se pressente fogosa debaixo duma capa de austeridade; e Isabella, a amante, a mulher livre, que se dá aos homens de quem gosta sem lhes pedir nada em troca, fotografando-os, não como troféus, antes recordação afectuosa.

Por baixo do desenho caricatural, grotesco e propositadamente infantilizado, há um colorido painel sobre relações, entre o encanto e a frustração. Encantador é o trabalho de Blain, a cor e o movimento de cada vinheta. E o conselho é este: após a primeira leitura, o melhor é mesmo folhear vagarosamente, apreciando cada vinheta e a arte sequencial do autor.


Gus – 1. Nathalie

texto e desenhos: Christophe Blain

Edição: Gradiva, Lisboa, 2021

«Leitor de BD»

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

de A a Z - Achille Talon (Greg, 1963)


Abecedário – A de Achille Talon (Greg, 1963). Um pequeno-burguês no seu pequeno mundo, com pequenos gostos e pequena vida. E também a mania das grandezas, as palavras de sete e quinhentos, o nariz, a indumentária pernóstica e a ideia que faz de si próprio. Grande criação, grande personagem.

«Leitor de BD»

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

discurso directo: Tibet

 Jijé [Jerry Spring] foi progredindo até se tornar francamente bom, mas um dia apareceu um jovem que fazia Jijés cem vezes melhor! Era Giraud [Blueberry]. Mas devo confessar que nunca li Charlier [argumentista de Blueberry], nem Martin [Alix, Lefranc] ou Hubinon [desenhador de Barba Ruiva e Buck Danny]. Fiquei-me por Hergé [Tintin], Jijé e pelo prodigioso Franquin [Spirou e Fantásio, Gaston], que é um verdadeiro criador, sempre em busca do domínio do desenho, como Hermann [Bernard Prince, Comanche, Jeremiah, As Torres de Bois Maury, Duke]. Quanto a Uderzo, trata-se de um artesão de génio, mas chamo criador àquele cujo trabalho não se parece com nada feito antes. Em Uderzo vemos o traço de Walt Disney, Astérix tem as mesmas proporções que Mickey, Obélix é o anão Feliz da Branca de Neve!» Tibet, (1931-2010). desenhador de Chick Bill e Rick Hochet (com argumento de A-P. Duchâteau), em entrevista à Bo-Doï, Fevereiro de 2000,

«Leitor de BD»