sábado, 26 de fevereiro de 2022

De A a Z: S,, de Spirou (Rob-Vel, 1938).



Jovem e voluntarioso groom do Moustic Hôtel, Spirou deu nome a uma revista que ainda hoje se publica, e com enorme qualidade. Ao contrário de Tintin, Spirou conheceu uma série de autores, todos de categoria, entre os quais se contam Jijé, Franquin, Tome & Janry ou Émile Bravo. De Spip, o inseparável esquilo de estimação, ao grande amigo Fantásio, jornalista, passando pelo Barão de Champignac ou o Marsupilami, sem esquecer os bandidos como Zantáfio e Zorglub, Spirou rivaliza com Tintin não apenas no carácter como no contributo que deu a uma aura muito própria da 9.ª Arte. 

«Leitor de BD»

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

heróis portugueses



 O livro de hoje, Macho-Alfa, primeiro de quatro volumes sobre as desventuras de um super-herói português, de Filipe Duarte Pires e Osvaldo Medina, suscita-nos duas micro-reflexões, a primeira das quais tem que ver com a ausência de personagens da BD portuguesa no nosso imaginário colectivo. É verdade que elas não são muitas, e na sua maioria, inconsistentes; mas, quanto a nós, o que determina esse vazio é a inexistência de uma indústria editorial, a exemplo do que sucede nos Estados Unidos, no universo franco-belga, em Itália e no Brasil. Por cá, são os pequenos editores que arriscam e não se lhes pode exigir milagres. Por outro lado, a imprensa, também ela em dificuldades, não ajuda; exemplos como o Bartoon (1993), de Luís Afonso, nunca foram muitos. Mas sempre somos dez milhões, que diabo, e os poucos mas bons que temos, fosse a BD portuguesa outra realidade que não um quase passatempo de nicho, e a história poderia ser diferente; acresce, para o bem e para o mal, que todos estes heróis de papel desaparecem quando os autores se retiram.

Alguns deles bem poderiam continuar por aí, no espaço público, fôssemos nós outra coisa: Quim e Manecas (Stuart Carvalhais, 1915); Zé Pacóvio e Grilinho (Cardoso Lopes, 1924); Tomahawk Tom (Vítor Péon e Roussado Pinto, 1950); O Guarda Ricardo (Sam, 1971), O Espião Acácio (Fernando Relvas, 1978), Jim del Mónaco (Louro & Simões, 1985) e Porto Bonvento (José Ruy, 1988), sem falar nos que ainda mexem: Pitanga (Arlindo Fagundes, 1985), O Corvo (Luís Louro, 2005), Super Pig (Mário Freitas e Carlos Pedro, 2006) Dog Mendonça (Filipe Melo e Juan Cavia, 2010), Homem Voador (2011, Álvaro e José Pinto Carneiro).

Macho-Alfa tem a particularidade de ser português e o único super-herói do (seu) universo. Desajeitado e mortífero, também despacha inocentes, sem querer. David Ferreira – nome de baptismo – é pois um super-herói no desemprego que se aluga a um reality show como modo de vida, para desespero do pai, António Martins, comissário de polícia, e da namorada, raquel Bastos, jornalista e blogger. A ideia é interessante, o desenho cumpre, a sequência prancha a prancha é conseguida, mas precisa arriscar no humor, evitar o lugar-comum, a piada inofensiva (dizer palavrões não é especialmente ousado). Jim del Mónaco, de Luís Louro e ToZé Simões é hoje impublicável por qualquer editor que queira evitar problemas com os novos inquisidores da cultura do cancelamento. (Quem se lembra as copiosa Gina e do negro Tião?) Se há coisa que os fanáticos desconhecem é a ironia, e têm em demasia a acrimónia, tanto quanto lhe falece o sentido de humor. Fazer humor fino e não malicioso é difícil por estes dias. E vem-nos sempre à memória um texto do grande José Régio (1901-1969), um dos espírito mais livres do século XX, o poeta de Cântico Negro (“não vou por aí”), que num ensaio escreveu algo como isto: não me contento em criticar o meu tempo, mas em ser contra o meu tempo – um tempo de totalitarismo, entenda-se. Segunda micro-reflexão: o humor ou ousa ou é inofensivo, e como tal, irrelevante. Aguardemos os álbuns seguintes.


Macho-Alfa, vol. 1

texto: Filipe Duarte Pina

desenhos: Osvaldo Medina

«Leitor de BD»

de A a Z - R, de Recruta Zero / Beetle Bailey (Mort Walker, 1950)



É uma espécie de Gaston Lagaffe dos comics. As histórias decorrem no aquartelamento de Camp Swampy, e todo o regimento é protagonista, do Sargento Tainha e seu cão Otto, ao Tenente Mironga, militar negro com simpatias pelo black power. Uma vasta galeria de uma das melhores séries humorísticas norte-americanas, em que pontifica um soldado raso, desleixado e mandrião, cujo lema é: “Não deixes para amanhã o que podes fazer depois de amanhã.”

«Leitor de BD»

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Will Eisner, um escolhido


Filho de imigrantes judeus, nado e criado no Bronx, Will Eisner (1917-2005) é um dos nomes maiores da 9ª Arte, sendo-lhe atribuído a cunhagem do termo graphic novel (novela ou romance gráfico). Enquanto autor, o longo percurso é marcado pela criação de Sheena, Rainha da Selva (1937), uma versão feminina de Tarzan, e, principalmente, The Spirit, publicado entre 1940 e 1952, um esplêndido policial de que falaremos em breve, que firmou Eisner como um autor de primeiríssima água. Após um período dilatado de afastamento da BD comercial, em 1978 publica um conjunto de quatro narrativas, Um Contrato com Deus e Outras Histórias de um Prédio, o livro que aqui nos traz.

Entre os comics infantis, as sagas de super-heróis exploradas à outrance e uma resposta underground e satirizante, havia na América pouco ou nenhum espaço para uma forma de expressão madura, não obstante nomes como Winsor McCay (Little Nemo), Harold Foster (Príncipe Valente) ou Charles M. Schulz (Peanuts), autores cujo génio fazia com que as respectivas obras atravessassem as fronteiras espessas dos quadradinhos. Eisner tinha consciência da especificidade da arte sequencial, que não se confundia com qualquer outra, começando assim a explorar uma forma de comics literários, até então quase um oxímoro, como salienta num prefácio de 2004. Através dela tudo podia dizer-se, como num filme ou um romance, na sua gramática própria.

Em Um Contrato com Deus (o resto do título perdeu-se na edição portuguesa), o autor oferece-nos evocações infanto-juvenis da vivência num prédio do Bronx, na ressaca da Grande Depressão de 1929. Um prédio, como um paquete de longo-curso ou até uma composição num caminho-de-ferro continental, é um habitat extraordinário para a criação literária, como se sabe, uma mina para quantos observam e trabalham o comportamento humano. E ele aí está, cru e humaníssimo a desfilar diante dos olhos. Na história que dá título ao livro, Frimme Hersch era um rapaz de tal modo altruísta que os aldeões vizinhos julgavam-no um escolhido de Deus. E assim, após mais um pogrom nessa Santa Mãe Rússia que periodicamente se dedicava a massacrar judeus, aqueles quotizam-se e enviam-no para a América. Antes, Frimme fixara na pedra um contrato com a divindade, em que se comprometia a dedicar a vida ao Bem. Um dia, já no Bronx, uma menina recém-nascida é depositada à sua porta, acomodada numa caixa de laranjas. Um sinal, certamente, e Frimme cria-a extremosamente como filha, até que uma doença arrebata-a, na flor da idade. O homem faz então a mesma pergunta que tantos judeus dirigiram ao longo da História à cruel potestade, da expulsão e conversão forçada nos reinos peninsulares, passando pelo suplício do Capitão Dreyfus, ao limiar das câmara de gás: “Se Deus exige que os homens honrem os seus compromissos / não está ele também sob compromisso??” Eisner perdera a única filha, de dezasseis anos; a agonia de Hersch é a sua, com um final perturbador. Mas o encantamento não acaba aqui: na próxima semana haverá mais Eisner.

O melhor realismo, desde Balzac e Dickens, (o primeiro, semideus de Eça de Queirós, o outro, nas palavras do escritor português, deus e semi), foi sempre o que considerou o homem como um amontoado visceral composto por coração, cabeça, estômago e espírito – o espírito que tudo aquilo misteriosamente produz, e que nalguns seres acontece suscitar o que um maravilhoso filósofo um pouco mais antigo qualificou como “necessidade metafísica” – algo que também assiste (ainda mais?…) aos ateus.

Will Eisner, ao assumir-se como repórter gráfico que documenta a angústia da existência e da subsistência, oferece uma obra que cala mais fundo em todos quantos pensam que a arte deve ter coisas a dizer para além de uma auto-referenciação excessiva, narcísica ou comiserada. “Gosto do realismo ou da realidade.” – escreveu Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999), romancista e crítico de convicções fortes, por vezes erradas, e que não era para brincadeiras – “Sabe-me a maçã. Como quatro por dia.” Falar do outro é sempre uma forma de empatia; o que não interessa se despreza, ignora-se. Nesse recanto da Grande Maçã que foi e é o Bronx, Eisner conduz-nos pelas aspirações dos seus bonecos tão reais, sempre com empatia.

Três narrativas seguem-se a “Um contrato com Deus”, todas esplêndidas. Em “O cantor de rua”, Eisner mostra como a vida prega partidas a quem fica a vê-la passar. Durante a Grande Depressão, havia homens a cantar árias nos becos dos prédios, esperando que lhes atirassem moedas. Figura perturbadora da infância que sensibilizava o coração romântico das mulheres, enquanto os maridos desconfiavam tratar-se de um qualquer batedor dum bando de larápios, Eddie é um desgraçado marcado pelo álcool e sem emprego,sequer para marido e pai. Um dia, o acaso cruza-o com uma “diva” decadente e retirada, que crê poder regressar à ribalta apadrinhando aquela bela voz. Mas, para Eddie, mesmo com o acaso a ajudar, os bolsos estão sempre rotos. “O zelador”, figura que representava o senhorio perante os locatários, por isso normalmente malquista, é uma história pungente de miséria moral, das coisas mais sórdidas que já nos foi dado ler, dum zelador alemão num prédio habitado por judeus. E é claro que a sordidez não está apenas num dos lados. Finalmente “Cookalein”, uma narrativa autobiográfica ternurenta e melancólica, deliciosa comédia de enganos, fala-nos das férias dos pobres, quando este iam para o campo passar uma semanas em casas particulares – como as dos Waltons (quem se lembra?…) –, cujos quartos eram arrendados por família e a cozinha era de uso comum, onde se faziam conhecimentos, tentava pescar-se noivos ricos e uns quantos adolescentes de sorte viviam a iniciação sexual.

Will Eisner retrata-se com os traços do Spirit – e a idade de ouro dos comics revive nestas páginas.


Um Contrato com Deus

texto e desenhos: Will Eisner

edição: Levoir, Lisboa, 2015

«Leitor de BD»,

aqui e aqui


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

de A a Z - Q, de Quim e Felipe / Quick et Flupke (Hergé, 1930)




Dois miúdos de Bruxelas, mais concentrados nas brincadeiras de rua e nas maquinetas de diversão que engendram que nos estudos, o que lhes traz por vezes dissabores vindos do mundo dos adultos – pais, professores, polícia de giro –, sempre postos em situações cómicas, próximas das que Hergé ensaiava nas histórias do repórter, esse Tintin que Quim e Felipe aguardam junto da multidão, no apoteótico regresso do Congo.

«Leitor de BD»

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

de A a Z - P, de Peanuts (Charles M. Schulz, 1950)


Um grupo de crianças do
Middle West norte-americano, conhecidas no mundo inteiro graças à sensibilidade de um autor cujo alter ego infantil, é cheio de insegurança e vontade desajeitada de ser querido, para impaciência tantas vezes do resto da malta. Mas, ao fim de todo este tempo e desde sempre, “nós amamos-te, Charlie Brown!”

«Leitor de BD»

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

palavras a mais



 Na BD existem os artesãos, os artistas e os fora-de-série, inimitáveis, apesar das tentativas de emulação ou cópia, cuja marca permanece para sempre. Nos quadradinhos há centenas de bons ou muito bons artistas; mas um Will Eisner ou um Jean Giraud estão num patamar a que a maioria não acede.

Giraud (1938-2012), explode em 1963 com a abreviatura Gir, assinando um grande fresco intitulado Fort Navajo, cujo protagonista é o célebre Tenente Blueberry – tantas vezes já por aqui referido, mas ainda não aprofundado. Assistente de Jijé (1914-1980), na série Jerry Spring, que indica o nome de Giraud para trabalhar o argumento de Jean-Michel Charlier (1924-1989), dele dirá Tibet (Chick Bill, Ric Hochet), numa entrevista já aqui referida, que Gir fazia Jijé melhor que o próprio...

Moebius, é o pseudónimo que adopta na mesma época, mas só na década seguinte é assumido como uma via paralela, principalmente com o esplêndido Arzach (1975), com a prevalência de um onirismo liberto, que se contrapõe ao realismo cada vez mais sujo, cada vez mais belo, de Blueberry. Mas apesar de os dois trajectos se distinguirem bem, é interessante ver como, ao mesmo tempo, Gir importa de Moebius alguma tonalidade e fluidez. Embora se desempenhasse bem como argumentista, inclusivamente em Blueberry, após a morte de Charlier, o encontro com o chileno Alejandro Jodorowsky (Tocopilla, 1929) ocorre pouco depois de Arzach, e vem dar a Moebius o nefelibata que lhe faltava, e com quem assinará, entre outros trabalhos, O Incal (1981), que nos é dado a conhecer através da prospecção atenta de Jorge Magalhães, na Editorial Futura.

Os Olhos do Gato (1978) é Moebius no seu esplendor, a partir de um texto minimalista de Jodorowsky, Publicado como brinde destinado aos leitores fiéis dos Humanoïdes Associés, que publicava a Métal Hurlant, foi objecto da avidez desses bichos estranhos que são os coleccionadores, suscitando ainda uma edição pirata por outros marginais da edição, bem-humorados, que se autodesignaram por “Androïdes Dissociés”... Tornado um livro de culto, os humanóides lançariam a edição comercial em 1981. São 48 ilustrações-BD e um frontispício num permanente campo e contracampo: nas páginas pares projecta-se a figura de um rapaz de costas e sempre na sombra com contornos de Yellow Kid (a obra pioneira de Richard F. Outcault, criada em 1896), “mirando” o skyline de uma cidade que dir-se-ia um misto de Metrópolis e Urbicanda. Nas ímpares, uma vinheta/ilustração cheia, em que o cenário parece ruinoso e pós-apocalíptico. “Mirando” veio atrás entre aspas, uma vez que a criatura tem os olhos vazados, comunicando telepaticamente com a águia Meduz, cuja missão bem definida é a de prover um novo e fresco par de olhos ao suposto tutor. Moebius é aqui o tal fora-de-série. Uma filactera final chegava e sobrava para acomodar os murmúrios do argumentista, se houvessem conhecido e meditado no dístico do poeta Alberto de Lacerda (1928-2007): “Palavras / Quase todas a mais”.


Os Olhos do Gato

Desenhos: Moebius.

Texto: Jodorowsky.

Edição: A Seita e Ala dos Livros, Prior Velho e Estoril, 2021

«Leitor de BD»