domingo, 17 de julho de 2022

um deserto editorial


Se exceptuarmos alguns nichos, incluindo o circuito de fanzines, que foi sempre circunscrito, o panorama da imprensa de banda-desenhada em Portugal é o de um deserto inóspito. Não há nada para o grande público, o que diz muito também do que somos. E se a actividade editorial do presente tem muito o que se lhe diga, de bem e de mal, nomeadamente a ausência de uma política efectiva de criação de hábitos de leitura, em BD, o que se vê é um público sem oferta a este nível, a não ser o que vem de fora, Porque existe um público, que poderia transmitir esse gosto a filhos e netos, como sucedia com gerações anteriores, a do Cavaleiro Andante ou a do Tintin. Não basta pôr os álbuns no mercado, esperando que um ou outro caia no goto; um editor a sério não é só isso, mas antes um banal gestor de produto, Veja-se o que sucedeu recentemente com o material Disney, saturando-se um mercado ávido, sem outra atitude editorial que não a de fazer dinheiro. O último editor com uma percepção do papel que deveria ter enquanto construtor de leitores foi Telmo Protásio, da Meribérica, em especial com Jorge Magalhães, no magnífico mensário Selecções BD. Revistas a sério precisam-se, pois, combinando clássico e contemporâneo, o de fora e o de dentro, agora que a BD portuguesa está como nunca antes.

Vêm estas considerações amargas a propósito de uma oferta filial de fumetti Disney comprados num quiosque em Milão: o número 5 de Il Club del Supereroi. Não só está lá tudo, excepto o fugaz Vespa Vermelha, como são doseados autores velhos e novos, dos norte-americanos Paul Murry, Carl Barks e Don Rosa, entre outros, aos italianos Ezio Sisto, Silvia Ziche e Marco Gervasio, e também os brasileiros Ivan Seidenberg, Carlos Edgard Herrero e Paulo Borges, o espanhol Jordi Alfonso, o holandês Bas Schuddeboom ou o japonês Shiro Shirai, com um mangá, a ler da direita para a esquerda, no fim da revista, tudo com textos explicativos e datas de publicação originais.

Voltámos a encontrar um Superpateta clássico, um Morcego Vermelho de sempre (duas personagens a explorar em breve) e um inusitado Superpato pensado nos Países Baixos, surgindo ainda uma interessante experiência que conjuga um original de Carl Barks de 1949 – “Super Snooper” – com um remake do seu discípulo espiritual, Don Rosa, e um outro, japonês, o tal mangá de Shirai. Donald encontra os sobrinhos a ler revistas do super-herói Super Snoopper (no mangá, é já um filme), e é crítico por Huguinho, Zezinho e Luisinho perderem tempo com literatura barata, percebendo, porém, pela reacção destes, que ele próprio está longe de ser um modelo. Tudo se altera quando, por engano, ingere uma solução química que lhe dará superpoderes. Ver as diferentes soluções a partir da narrativa matriz nas duas versões da década de 1990, é um dos atractivos desta revistinha, que, não sendo do outro mundo, não se compara com o nosso deserto.

Il Club dei Supereroi #5

Texto e desenhos: vários autores

edição: Panini Comics, Modena, Março de 2022

terça-feira, 12 de julho de 2022

de A a Z: C, de Coronel Clifton (Raymond Macherot, 1969)




Harold Wilberforce Clifton, oficial reformado do MI5, detective amador, escoteiro graduado, com um fleumático bigode imperial, indumentária impecável, governanta previdente e um MG-Type Midget de fazer inveja, ideal para as deslocações entre Londres e a cidadezinha fictícia de Puddington, onde vive, é uma das grande criações de Macherot, um dos grandes belgas da BD.

«Leitor de BD»


sexta-feira, 8 de julho de 2022

animais como nós


Com
George Herriman, o criador de Kazy Kat (1913), e o trio gata-rato-cão, por entre amores mal resolvidos e “crimes” associados, abriu-se um veio nos quadradinhos que chegou aos nossos dias, o do antropomorfismo, Ao contrário do que se possa pensar, este não é forçosamente orientado para um público eminentemente infantil: Pat Sullivan e o surreal Gato Félix (1919), Walt Disney com Ub Iwerks, Floyd Gottefredson e Carl Barks, entre outros, e as suas inúmeras personagens, do impoluto rato Mickey (1928) ao irascível Pato Donald (1934), passando pelo avarento Tio Patinhas (1947) a puros bandidos como João Bafo de Onça (1926) e os Metralhas (The Beagle Boys,1951), constituem uma pequena parte da panóplia de personagens antropomórficas que cobrem as inconstâncias do comportamento humano. Sem desenvolvermos, é obrigatória a referência ao underground Fritz o Gato (1965), do genial Robert Crumb – a libertação sexual chegada aos comics –, e o notável Maus (1980), de Art Spiegelman, em que o triunfo do mal e o drama pessoal que o Holocausto representou, é-nos contado através de ratos, gatos, cães e porcos. Também na Europa, Raymond Macherot, com Clorofila (1956) e Sybilline (1967), elaborou sobre o bem e o mal servindo-se das aventuras daqueles ratinhos, enquanto o Inspector Canardo (1978), um “Columbo” em corpo de pato etilizado, deslindava crimes viciosos sob nuvens de fumo, prenunciando um menos rugoso Blacksad (2000), dos espanhóis Guarnido e Canales.

Não é bem uma fábula do género rato do campo / rato da cidade, à La Fontaine que Rodolfo Mariano, guitarrista e autor de BD (Coimbra 1981), nos apresenta neste intrigante – a começar pelo título – Bottoms Up, Prémio “Toma lá 500 paus e faz uma BD” de 2019, e seu primeiro livro. Chegado da aldeia, transportado por um atrelado cigano ou circense puxado por uma espécie de muflões de aspecto satânico, o rato Simão apeia-se no limiar da grande cidade. Por bagagem, uma mochila sem fundo acomoda um velho mapa, meias de cada nação entre uma parafernália de objectos úteis e inúteis, e ainda um livro mágico sobre “naves especiais”. Dirigindo-se à cidade, procura a chave que possibilite a libertação de um amigo, prisioneiro do Inquisidor-Mor. Uma mélroa de nome Cassandra ou o fantasma da raposa vegetariana Annalisa, contracenam com Simão, no meio de bandidos, carrascos, guardas, comerciantes e mortos-vivos que povoam uma urbe que poderia vir descrita num livro de Tolkien. Caso invulgar nos quadradinhos nacionais, o estilo de Rodolfo Mariano já foi comparado com o do americano Simon Hansselman; o francês Lewis Trondheim é também um nome que aqui nos parece ecoar. Elogio da amizade e denúncia do poder, anuncia-se uma sequência da narrativa com Cloak and Dagger – ou seja: capa e espada –, que, como Bottoms Up foi primeiro publicada online. Mariano tem uma apetência pelo imaginário fantástico pulp, que utiliza para falar de coisas sérias, e o antroporfismo revela-se uma esplêndida opção.


Bottoms Up

texto e desenhos: Rodolfo Mariano

edição: Chili com Carne, Cascais, 2019.

«Leitor de B D»