segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

espectros

Se a infância é um país, como escreveu Antoine de Saint-Exupéry em Piloto de Guerra (1942) – fragmento de uma frase maravilhosa que já aqui citámos a propósito da manga de Takashi Murakami, O Cão que Guarda as Estrelas –, há puerícias que melhor fora delas ser apátrida, pelos traumas, e o sofrimento que se transporta pelo resto da vida. O relato desenhado por Bernardo Majer (Lisboa, 1990), que André Oliveira nos oferece, um dos mais profícuos autores da BD nacional, é contudo um pouco menos pessimista. Entre o céu e o inferno há o purgatório, e será por aí Toutinegra transcorre.
«Qualquer vida tem uma história. Começa a ser conhecida desde o dia em que nascemos / e arrasta-se muito para além da nossa morte.» (p. 72). Esta é uma narrativa de desconformidade. A acção passa-se na aldeia de Moinho, um desses muitos lugares do país à beira da extinção, com meia dúzia de habitantes quase sem crianças e no limiar da fantasmagoria. No centro da narrativa está Pedro, rapazinho de nove anos a quem a vida virou as costas, um desadaptado sem que o saiba porquê, um incompreendido, que mais se compraz na contemplação da Natureza que na companhia das pessoas; entre a escola e a igreja, sem pai, a mãe devota e desequilibrada. Um estranho na sua pele, tem em Laidinha a única amiga e também única colega (a outra criança da aldeia), com pais relativamente idosos, “milagre, nascido à margem do tempo”.
E há também um velho moinho que esconde uma criatura fantástica e monstruosa, com quem Pedro e depois Laidinha, estabelecem uma relação de confiança, espécie de esfinge, “com voz doce de mulher”, a Senhora do Moinho: «Estou nos capítulos finais de todas as histórias que conto.» (p. 77). Um cenário para uma, várias tragédias dificilmente ultrapassáveis: «aceitar o fim de alguém é consentir o nunca mais» (p. 33). Será no regresso às origens da memória que Pedro encontrará a sua redenção: «Nunca me senti ser dali e ao mesmo tempo / nunca pertenci tanto a um pedaço de chão. » (p. 8)
Os tons suaves do desenho de Bernardo Majer, vinhetas sem cercadura, traço como que de ilustrador, à partida poderiam não ser os mais indicados para uma narrativa trágica como esta, pois Toutinegra sendo uma história sobre um miúdo, é tudo menos um livro infantil; e por várias vezes o nome de Didier Comès nos assomou na leitura e releituras – Toutinegra é um livro que se presta a revisitações. Mas à medida que o texto ia tomando conta de nós, mais se tornava evidente o erro e o preconceito dessa concepção do primado das trevas, aliás bem presentes, carecesse de sobressair na parte desenhada desta narrativa: para muitos o terror não é o negro que cobre, mas o branco que tudo desvela.
Toutinegra
texto: André Oliveira
desenhos: Bernardo Majer
edição: Polvo, Lisboa, 2019


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