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sexta-feira, 7 de maio de 2021

Popeye, um vencedor do último século


 

Os anos fizeram com que raras personagens centenárias, ou quase, tenham caído nos esquecimento; e talvez apenas uma possa ter um reconhecimento planetário. Vejamos: de finais do Século XIX a até à década de 1920, os dedos de uma mão chegam para contar as séries ainda hoje susceptíveis de interessar a um público mais vasto: Os Sobrinhos do Capitão, de Rudolph Dirks (1897), enquanto houver rapazes endiabrados; Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay (1905) e Krazy Kat, de George Herriman (1909), continuam a alcançar leitores fervorosos, embora com critérios mais apertados. Os anos dez são um deserto, deste ponto de vista; nem mesmo o Panfúcio de Bringing Up Father, de George McManus (1913), teria pernas para andar só por si, a não ser destinado a nichos de coleccionadores. Depois há um gato e um rato, Félix (1919) e Mickey (1928), mas ambos nasceram para as telas, não são criações originais dos quadradinhos; e Tarzan, desenhado em 1929 por Hal Foster, procede, por sua vez, dos romances de aventuras. O que restará então? Dois bonecos desse mesmo ano, que os historiadores consideram como o início da “idade de ouro” da 9.ª Arte: rm escala apesar de tudo mais modesta, de proveniência belga, Tintin, de Hergé; e Popeye, o campeão de facto do século que se completará esta década.

Popeye, que na sua divertida crueza dir-se-ia precursor de um tom underground, é todo ele uma deformidade, do corpo à fala, excepto no carácter. Alma pura e destemida, sempre de cachimbo, os espinafres dão-lhe uma energia que aumentam a já notável força. A primeira aparição ocorre nas tiras de Thimble Theatre, que se publicava havia dez anos, tendo como protagonistas a família de Olive Oyl (Olívia Palito). Em breve, Popeye torna-se a estrela, e com ele Wimpy. um pequeno escroque obcecado por hambúrgueres, Swee' Pea (Ervilha de Cheiro), filho adoptivo, o mais inteligente do elenco, e Bluto, inimigo e rival, disputando as atenções da bela Olívia; acrescente-se ainda Poopdeck Pappy, pouco exemplar nos seus 96 anos; Sea Hag, a Bruxa do Mar, ainda mais pavorosa que a da Branca de Neve, e Eugénio o Jeep, estranho animal vindo dos confins da África Negra.

Em Popeye e o Jipe (1936), Olívia Palito recebe dum tio um caixote com o estranho bicho, muito dócil, com o dispendioso hábito de nutrir-se de orquídeas. A quadridimensionalidade (!) do cérebro permite-lhe actuar sobre o espaço e o tempo: desmaterializa-se e prevê o futuro... A têmpera de Popeye e os atributos de Eugénio (como se captura algo que se volatiliza?), fazem gorar os planos de um ambicioso para comprar e raptar o animal; e como adivinhava o futuro, um trafulha como Wimpy e uma flausina como Olívia vêem-se milionários, apostando em corridas de cavalos e combates de boxe. Quando chega a vez do embate entre o marinheiro e o colosso James J. Jab, o jeep prevê, supostamente, que Popeye o perderá. Ao ver a namorada e o amigo apostarem contra si, o moral do marinheiro desaba. Livro que nos acompanha desde 1978, relido agora, mantém a graça e o viço. Popeye tem carisma, por isso continua por aí, de saúde.


Popeye e o Jipe

texto e desenhos: E. C. Segar

edição: Editorial Presença, Lisboa, 1973 

«Leitor de BD»

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

O Reizinho

Os monarcas que perduram no imaginário são os que passaram das medidas, sejam eles reais, de ficção ou mistos: Artur e a Távola Redonda, em Camelot; Lear, o louco que não reconheceu o (des)amor das filhas; Ivan o Terrível, na génese da Rússia de hoje; o Rei-Sol, que amansou as feras domésticas ensinando-lhes etiqueta. E que dizer de Afonso Henriques, ou Pedro I?…
O rei bonacheirão é mais raro. À memória ocorre de imediato o nosso D. Luís, “o Bom” ou “o Popular”, como ficou para a História, deixando correr o marfim da Regeneração, degenerando-se em “Rotativismo”, enquanto, na Cidadela de Cascais, traduzia Shakespeare (muito bem, ao contrário das más-línguas jacobinas) e tocava o seu violoncelo em trios e quartetos, muito mal, de acordo com a benevolência do médico da Cãmara real: “Senhor, é o quarteto mais ocidental da Europa!...”, não ousando outro qualificativo para elogiar… É claro que quem veio a pagar as favas foi o filho Carlos, contas, porém, doutro rosário.
Muitos reis há na BD, porém, talvez de nenhum emane tanto carisma quanto deste The Little King O Reizinho, na acertada versão do Brasil, país em que teve grande sucesso, com direito a revista própria e a uma rábula nele inspirada, interpretada por Jô Soares. Criado por Otto Soglow (1900-1975), nascido num bairro modesto de Manhattan, a personagem a que deu asas é uma caricatura medieval em tempos modernos – em que dragões e castelos coexistem com uma real esquadrilha aérea –, com insígnias indispensáveis à majestade: o manto com gola de arminho, a coroa – que José Sobral, autor da introdução ao livro de hoje, compara a um cone de gelado invertido –, coroa futurista que não tira nem para dormir, e uma barba obstinada. Ceptro não tem, mais provável será segurar numa das mãos um papagaio de papel ou um chupa. Baixote, rotundo, é atento ao bem-estar dos súbditos, em especial vagabundos, mas sabe quais são as sua prerrogativas. Em mais de 40 anos de reinado – estreou-se na New Yorker em 1931, findou quando morreu o autor –, toda a sua facúndia era gestual, nas situações bem exploradas por Soglow em traços tão sumários quanto expressivos. Este, que era um bem disposto, transpôs o humor inato para a criatura que lhe deu fama e sustento, depois de um curso de desenho por correspondência, pensando provavelmente nas suas personagens preferidas: Little Nemo, de Winsor McCay e Panfúcio / Bringing Up Father, no original, de George McManus, de quem já aqui falámos. E nestes dois extremos, entre o onírico e o grotesco, construiu Otto Soglow um pequeno universo (rainha, ministros, lacaios, cidadãos...) que provoca a gargalhada franca ou um sorriso irónico e pensativo.
Uma coisa é certa, leitores: haja o que houver, o Reizinho não se deixa manietar pela chatice da realidade. Um exemplo.

O Reizinho – Sua Majestade o Humor
texto e desenhos: Otto Soglow
edição: Opera Graphica, 2004.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

desventuras do himeneu

Tal como Jacobs se retratou fisicamente no Coronel Olrik, arqui-inimigo de Blake e Mortimer, sendo ao que se sabe pessoa respeitadora da lei, também George McManus (1884-1954), designer de moda, caricaturou parte da fisionomia, aplicando-a aos traços do castiço Jiggs (que os brasileiros, com propriedade, renomearam como Pafúncio).
Bringing Up Father / Educando o Pai, cujas tiras apareceram na imprensa norte-americana em 1913, conta-nos o quotidiano duma família de novos ricos. De origem irlandesa, Pafúncio fora um trolha a quem saíra a sorte grande. Impecavelmente vestido (chapéu alto, colete distinto, polainas), bengala numa mão e charuto aceso, nunca deixou de ser um homem simples, cujas ambições, para além do vil metal, se resumiam a umas horas de pândega com os amigos. A mulher, Maggie (Marocas, na versão brasileira), antiga lavadeira, deslumbra-se com vestidos, jóias, a ópera, a sociedade – um tormento para o pobre cônjuge, que ainda tem de aturar os caprichos sentenciosos da filha, Norah, espécie de pin up langorosa.
A série anda pois à volta destas idiossincrasias de marido pelos cabelos com as pretensões operáticas da mãe e as maneiras dispendiosas da filha, quando não tem que levar com os cunhados penduras, todos cadastrados e recém-saídos da prisão. Escapar-se à família sem ser vítima de violência doméstica é sempre o grande móbil destas tiras, em que o protagonista ora tem êxito ora (na maioria das vezes) soçobra à ira conjugal.
Pafúncio
texto e desenhos: George McManus
edição: Martins Fontes, São Paulo, 1989