quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

irredutíveis

Espécie de aldeia gaulesa da língua, o mirandês resistiu a séculos de assédio do seu primitivo vizinho, o galaico-português, tornado idioma imperial. Em 1999 passou a segunda língua oficial do país, falada por pouco mais de dez mil pessoas. Língua que quer afirma-se tem de escrever-se e publicar-se. Astérix, já a fala há vários anos. La Filha de Bercingetorix é o quinto álbum do pequeno gaulês para aqueles irredutíveis transmontanos, e também para os curiosos.




domingo, 23 de fevereiro de 2020

a intimidade da dor

Não há respostas simples para o terrorismo islâmico, duas palavras que se contaminam e degradam, apesar da colecção de crimes do Ocidente (o Iraque ainda ontem) e de os próprios muçulmanos se contarem entre as principais vítimas: o fanatismo sectário e assassino é a casca grosseira resultante de um longo processo histórico de acção e reacção, ressentimento e revolta, em que os únicos inocentes são quantos foram abatidos.
Como enfrentar a morte estúpida de um ente querido, na sua inesperada aleatoriedade? Como gerir a impotência diante da súbita perda irreparável? Como lidar com a própria dor? Como desenhar a carnificina sem ceder ao mau gosto? Para um problema tão complexo e de difícil resolução (?), será sempre avisado encará-lo de frente, sem um maniqueísmo simplório. Foi o que tentou fazer a editora Des ronds dans l’O, de Vincennes, ao convidar seis autores de BD a desenhar número igual de depoimentos de familiares de vítimas do atentado de Nice, ocorrido a 14 de Julho de 2016. Nessa noite de celebração, um camião conduzido por um zombie fanatizado levou à frente tantos quantos pôde, massacrando 86 pessoas e ferindo 458.
O álbum Promenade de la Mémoire sairá em Março; no entanto, L’Immanquable, no seu último número, pré-publicou duas das seis narrativas, com entrevistas às respectivas autoras, histórias tocantes que perscrutam a intimidade da dor.
Em “Palavras para Aldjia – o relato de Seloua”, a irmã da narradora perde a vida no Passeio dos Ingleses, sob o olhar da filha, que não tem coragem de dar ela própria a notícia aos adultos da morte da mãe, numa intuitiva atitude de autoprotecção em face de expectáveis traumas futuros. Será a tia, Seloua, quem procurará saber de notícias de Aldjia, nessa aflição tendo defrontar-se com a fúria horrorizada dos franceses europeus, que a vêem, sendo magrebina, não como mais uma vítima, mas cúmplice. O trabalho de Jeanne Puchol é extraordinário, com todas as pranchas a preto e branco, excepto a última, funcionado a cor como virar de página em direcção ao apaziguamento, mas com a memória presente. As imagens relativas ao momento do atentado são todas indirectas, numa prancha com múltiplas vinhetas.
A segunda história, “A dor das palavras – O relato de Anne”, concebida por Céline Wagner em tons esfumados, fala-nos de uma pintora que à hora do atentado em Nice está com o marido e o filho num cruzeiro nos fiordes noruegueses, longamente preparado. Aí sabem do sucedido, com a preocupação de a filha, regressada havia pouco do estrangeiro, estar também ela na Promenade. Será ainda em solo norueguês que irão saber da sua morte, pelas notícias do jornal Nice-Matin. O desgosto insuportável interferirá no trabalho da pintora, em especial no quadro que deixara planeado para responder a um pedido daquela a quem dera a vida. Vida roubada assim, sem porquê .
Promenade de la Mémoire
Des Ronds dans l’O, Vincennes, 2020

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Livros que me apetecem - a partir de Simenon

Há jovens prostitutas a serem mortas em Nogales, cidade dupla dos dois lados da fronteira entre o Arizona (Estados Unidos) e Sonora (México), quando François Colombe, escritor de policiais, aí se desloca na companhia da secretária, Kay. Uma BD de Philippe Berthet e Jean-Luc Fromental, a partir de uma história de Georges Simenon. A publicar pela Dargaud em Março.De l'Autre Cotê de la Frontière, Dargaud.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Livros que me apetecem - «Super Groom»

Dir-se-ia quase inevitável, com tanta recriação e sequelas e séries paralelas: Spirou transforma-se no Supergroom, para “rivalizar” com os super-heróis americanos. Aparição em 2017 numa história curta paródica, da dupla Vehlmann & Yoann, parece que caiu no goto dos leitores, e assim a Dupuis acaba de editar novo álbum, cujo título diz muito: Justicier Malgré Lui.


terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Champignac apaixona-se


A guerra traz um manancial de histórias em que, do heroísmo individual à miséria humana, em campo de batalha ou num habitat de sobrevivência racionada, o ser humano é posto à prova. Mesmo no inferno há momentos de pequena felicidade ou evasão: Jaime Cortesão, Augusto Casimiro e Sousa Lopes arranjaram tempo e espaço, no meio da carnificina da Flandres, para um repasto de bacalhau, com couves e batatas numa horta improvisada por entre as trincheiras, assim descreve o primeiro nas Memórias da Grande Guerra (1919). O mesmo Cortesão que, «entre duas granadas», tirava do bolso um livro de poemas de Vigny, tal como Stefan, protagonista do Bosque Proibido (1971), de Mircea Eliade, levava os sonetos de Shakespeare para os subterrâneos, quando o blitz tomava conta do céu de Londres, para não se esquecer do obscurecido esplendor da humanidade em cada um de nós.
Pacómio de Champignac (Pacôme Hégésippe Adélard Stanislas, conde de Champignac), o excêntrico sábio das aventuras de Spirou e Fantásio criado por André Franquin e Jijé (o autor de Jerry Sping), encontrou o amor na guerra. A acção remete-nos para 1940. Champignac, vila fictícia situada perto da fronteira da França com a Bélgica, acaba de ser ocupada pelos invasores alemães, alojando-se o comando na morada o jovem conde. Trazem consigo uma misteriosa máquina chamada “Enigma”, que, com três módulos de encriptação diariamente alterados, tornam virtualmente impossível a decifração pelos ingleses dos códigos secretos. Ao mesmo tempo, Pacómio recebia um pedido de auxílio do cientista chefe de Bletchley Park, complexo a norte de Londres onde secretamente os serviços secretos britânicos reuniram um escol de matemáticos, linguistas, xadrezistas, campeões de palavras cruzadas e amantes de puzzles, procurando antecipar-se aos ataques desferidos pelas forças alemãs, decifrando-lhes os códigos. Aqui conhecerá uma adorável escocesa, e ambos vão trabalhar com Alan Touring, o génio da computação, perseguido no pós-guerra pela sua homossexualidade; irão também em missão com Ian Fleming, episódio em que ficamos a saber que os gadgets de James Bond foram na realidade inspirados pela mente engenhocas de Champignac…, e, naturalmente, serão recebidos pelo próprio Churchill.
Não sendo esmagadora, trata-se de um história escorreita e bem pensada pelo casal BéKa (Bertrand Escaich e Caroline Roque), desenhada e colorida, com notório entusiasmo por David Etien, cujas pranchas têm um excelente dinamismo. Destaque também para as piscadelas de olho à série-mãe: do soporífero cogumelo, com papel acrescido na série canónica, que o acompanha à Grã-Bretanha, aos provincianos champignacenses, em especial o risível e pernóstico presidente da câmara, terminando no Moustic Hotel, em Bruxelas, com uma discreta aparição do próprio Spirou.
Champignac – Énigma
texto: BéKa
desenho: David Etien
edição: Dupuis, Marcinelle, 2019


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

livros que me apetecem - «Andrómeda ou o longo caminho para casa»

Outro acontecimento editorial é a novela gráfica de Zé Burnay (1991), Andrómeda ou o Longo Caminho para Casa, uma história de viagem de regresso, fora do tempo presente. Previamente lançada em inglês surge agora com a chancela de A Seita, numa edição cuidada, com esboços e ilustrações de outros artistas, entre os quais Mike Mignola (Hellboy), admirador do artista português. Também músico, Burnay compôs uma banda sonora para a sua narrativa.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

livros que me apetecem - «Parícutin»

Gonçalo Duarte (Setúbal, 1990), músico – é guitarrista dos Equation, uma entusiasmante banda do Porto, com um som para além do psicadélico e do rock progressivo – e autor de BD, até agora em obras colectivas, publica um primeiro livro a solo, o romance gráfico Parícutin, na Chili com Carne. E como o texto de apresentação da editora é um esmero, aqui vai ele: « Não admira que se sinta nesta obra uma vibração eléctrica, nervosa e onírica, uma leitura universal que nos conta como o espírito individual sai sempre quebrado quando se questiona o urbanismo e a vivência comunitária no século XXI».


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Vasco Granja

Na BDteca da Amadora, uma exposição extraordinária sobre um dos grandes divulgadores dos quadrinhos, como ele gostava de escrever, e do cinema de animação, tendo por base a que esteve patente no último Amadora BD, mas aumentada. Documentos, cartas, memorabilia e desenhos originais. Até 2 de Maio.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

uma Batalha de Stuart

As histórias aos quadradinhos têm uma tipologia que desde cedo foi infringida: imagens sequenciais contando uma história mais ou menos circunstancial, em que o discurso directo é reproduzido através de filacteras, os ‘balões’ com um apêndice indicando o locutor. Narrativas por imagens existem desde a Suméria, se não quisermos porventura ir ainda mais longe, às cenas rupestres…, e filacteras, pelo menos desde a Idade Média – mas só se pode falar apropriadamente da existência da banda desenhada, quando esta ganhou uma dupla realidade, editorial e social, com a sua difusão através da imprensa, no século XIX. O cartoon poderá, eventualmente, ser considerado como um subgénero, ou não. Há argumentos para ambas as posições, que se deixam aos teóricos, não sem lembrar que uma série tão emblemática como Príncipe Valente, de Harold Foster, não tem filacteras, tal como não é raro verificar-se num gag ou numa tira a ocorrência de uma única vinheta, em que o talento do autor aí concentra tudo o que pretendeu dizer. Assim o cartoon.
Interessa é justificar que para nós faz sentido a presença dos cartoons de Stuart Carvalhais (Vila Real, 1887- Lisboa, 1961), numa rubrica de BD, tanto mais que se trata do pioneiro da 9.º Arte em Portugal, com as aventuras de Quim e Manecas (1915), além de muitas outras áreas em que aplicou o seu extraordinário talento, da pintura (Jazz, da Colecção de Arte Moderna da Gulbenkian) ao cartaz (o Fado, enfiado nas mãos dos turistas, que nunca saberão quem foi o Stuart), da ilustração ao design gráfico: são suas as capas de dois grandes romances portugueses da década de 1920: Andam Faunos pelos Bosques (1926), de Aquilino Ribeiro e Emigrantes (1928), de Ferreira de Castro.
A Batalha, jornal diário da Confederação Geral do Trabalho (CGT), foi fundado em 1919, e chegou a ser o terceiro com maior difusão nacional, depois do Diário de Notícias e de O Século. Em 1923 lançou um suplemento literário, que saía todas as segundas-feiras, por forma a dar o descanso dominical aos tipógrafos. Ali escreveu o escol do publicismo anarquista do tempo, parte do qual estará na génese do histórico semanário O Diabo, em 1934.
A traço rápido e contorno grosso, estes desenhos de Stuart estão dentro do espírito do jornal, feito por trabalhadores, para trabalhadores e pelos trabalhadores; e o alvo era o sistema de poder: a falcatrua financista, a amoralidade burguesa, e os seus instrumentos: a cozinha política, a autoridade fardada e a Igreja, com um humor umas vezes áspero, outras irónico. E uma impressiva atenção aos ‘humilhados e ofendidos’, expressão que tanto enfado causa aos yuppies e aos nenúfares das letras & das artes, à direita e à esquerda.
Renda Barata – e outros cartoons de Stuart Carvalhais n’A Batalha
apresentação e notas de António Baião
edição: A Batalha e Chili com Carne, 2019


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

livros que me apetecem - Léna

Uma jovem mulher que pede à errância respostas para o seu desencontro interior. O terceiro e derradeiro álbum, publicado pela Dargaud, põe-na agora nos bastidores de uma conferência internacional, durante a Guerra Fria. O desenho é de André Juillard, que, entre outros trabalhos, conhecemos de Blake & Mortimer, e Pierre Christin, o argumentista de Valérian, agente espácio-temporal e de algumas narrativas com Enki Bilal. Quem se lembra de A Caçada, certamente não quererá deixar escapar este.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

livros que me apetecem - Milo Manara

O triestino septuagenário tem coisas boas, e coisas muito boas. Tanta bondade, que o indulta doutras não tão boas, é motivo mais do que suficiente para espiolhar estas Quimeras Fascinantes, colectânea de histórias curtas e frisos impressionantes, com homenagens a Hugo Pratt, com quem assinou obras extraordinárias, e a Jean-Claude Forest, criador de Barbarella, uma Brigitte Bardot tornada Jane Fonda, e cantada por Gilberto Gil. Edição: Arte de Autor.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

livros que me apetecem: «Mais où est Kiki?»

Mais de vinte anos após o último álbum, regressa a dupla Tif e Tondu, dois investigadores criminais particulares, defrontando um recorrente arquinimimigo, Monsieur Choc, alguém que aparece acobertado por um capacete de armadura medieval – uma espécie de Olrik, mas mais assutador. Criada em 1938 para a revista Spirou, a série celebrizada por Will, é retomada pelos irmãos Blutch & Robber. Mais ou Est Kiki?, publicado pela Dupuis, foi lançado no Festival de Angoulême, que encerrou ontem.


terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

um digesto de BD

Já há muitos anos que a revista Spirou é o verdadeiro “hebdomadário dos jovens dos 7 aos 77 anos”, desde que a rival Tintin, que ostentava essa frase na capa, cessou a publicação, em 1988. Spirou sai desde 1938, e não conhecemos melhor com semelhante modelo. Trimestralmente, a editora de Marcinelle lança também um grosso volume de quase 200 páginas, intitulado Méga Spirou, que, pelo preço módico de 5,90€ (mais um euro porcá), oferece o equivalente a dois álbuns completos e todo o seu arsenal de gags, tiras e histórias curtas de pendor humorístico, destinados à faixa etária em que também se encontra este leitor...
Neste n.º 20, as narrativas longas são Louca, de Bruno Dequier, série que conjuga o mundo do futebol com o fantástico, e Champignac, de BéKa e Etien, já referido na semana passada e a que queremos voltar.
Algumas das outras: Kid Paddle, de Midam, na capa edição, ao pé de quem o insuportável Titeuf faz figura de bem comportado; do mesmo Midam, com desenhos de Adam, o hilariante Game Over, com um desaustinado guerreiro de fantasia medieval e a sua 'bela' dama, sempre ameaçados pelos terríveis blorks, monstros que são uma espécie de coisos; e acrescentemos Nelson (de Bertschy), um demónio endiabrado acolhido por uma rapariga e o seu cão; o ternurento Dad (de Nob), pai celibatário de quatro filhas, das fraldas à adolescência; Mamma Mia!, texto do grande Lewis Trondheim, e desenhos de Obion, em que observamos o universo feminino multiplicado por quatro, da bisavó à bisneta; Tamara, jovem com romantismo e peso a mais, de Zidrou, outro grande autor, com traço de Darasse e Boss; e Les Vacheries des Nombrils, do casal Dubuc e Delaf, grupo de três teenagers, em que Vicky e Jenny tentam aproveitar-se da ingenuidade benfazeja de Karinne, com resultados nem sempre os esperados. A não perder, os conhecidos em edição portuguesa: O Pequeno Spirou, da extraordinária dupla Tome & Janry (o primeiro, falecido em Outubro, é aqui homenageado); o patusco Agente 212, de Cauvin e Kox; e Cédric, do mesmo Cauvin, com desenhos de Laudec, uma criança como todas as outras, que, dada a avançada idade do seu criador, continua a brincar com os amigos na rua, algo que a selvajaria social que nos submerge deixou de permitir.
O veterano Raoul Cauvin (Antoing, 1938) é, de resto, uma figura que marca presença triplamente neste Méga Spirou, uma vez que assinalando, com o desenhador Willy Lambil (Tamines, 1936), 50 álbuns dos Túnicas Azuis, cujo palco da Guerra da Secessão é pretexto para muito mais do que uma série humorística, concede entrevista conjunta, retratando-se a si mesmos num gag. Nessa conversa ficamos a saber que, durante o meio século de trabalho, em conjunto estiveram cinco anos de relações cortadas, cabendo à redacção fazer a ponte entre argumentista e desenhador...
Méga Spirou #20
edição: Dupuis, Marcinelle, Dezembro de 2019


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

livros que me apetecem -- .. e Duke, outra vez

Já saiu no país de origem o quarto álbum do processo de auto-descoberta de Morgan Finch, aliás Duke, um western extraordinário de Hermann, com argumento do filho, Yves H. A edição portuguesa não deve tardar. Duke – La Dernière Fois que J’ai Prié, Le (Le Lombard, 2020).