Paul
Berthier é um foto-repórter de nomeada. Em "Terra" (assim
mesmo, em português), a sua grande obra editada em livro, o sublime
das paisagens exóticas vive paredes meias com a miséria e os
regimes que atropelam os direitos humanos. Às portas de
velhice, e atormentado por um aneurisma cerebral, o seu propósito é
o de organizar um álbum de fotografias de pendor erótico, de
mulheres com quem manteve relações íntimas, umas horas ou uns
anos, não muitos, uma vez que Paul é um homem que não procura
criar raízes, é um homem que passa pela vida das mulheres.
A
acção decorre no arquipélago de Chausey, no Canal da Mancha –
Paul tem aí o refúgio, numa pequena casa que herdara dos avós –,
e desencadeia-se quando, num paroxismo de desespero, o pavor de ficar
meio inutilizado em consequência da doença, como sucedera ao pai,
empreende o caminho para a costa para se suicidar. Mas um sinal
luminoso a estralejar, indício de naufrágio, trava o intento.
Conhecendo os rochedos como a palma da mão, arranca numa lancha em
direcção ao pequeno veleiro em risco de se desfazer de encontro às
rochas. A bordo está Kirsten, assistente editorial na casa que o
publica, que se dirigira à ilha, sem avisar, para acertar
pormenores.
Recuperada
e enxuta já no acolhedor chalé, vendo as fotografias de inúmeras
mulheres dispostas nas paredes, pede-lhe que fale sobre o projecto, o
mesmo é dizer que lhe conte a sua história. Duas gerações
diferentes, ele um abencerragem dos libertinos anos 60 e 70, ela
jovem mulher do tempo do #mee too, o caldo não tardará a
entornar-se; Kirsten a acusá-lo de ser um predador exibindo troféus
de caça, o que Paul nega com veemência; pelo contrário, apreciando
as mulheres e o prazer mútuo que uma relação suscitava, apenas
estava atento aos sinais, tendo a experiência ensinado que quando um
homem aborda uma mulher, se esta não tiver já reparado em si com
agrado, dali não levará nada... Quando a dinâmica do diálogo
precipita a acção, ficamos a saber que Kirsten não é apenas a
publisher
que se lhe apresentou, mas alguém com ligações ao passado.
Se
o argumento cumpre (de Denis Lapière, Namur, 1958) abeirando-se
perigosamente de alguns clichés, o maior interesse reside no
trabalho de Dany (Daniel Herontin, Marche-en-Famenne, 1943), um dos
últimos grandes nomes da idade de ouro da revista Tintin. As
pranchas iniciais, as da tempestade sobre a ilha, são magníficas,
as analepses distinguem-se do tempo presente através do recurso à
aguarela e as expressões, numa BD que assenta sobretudo em diálogos
de forte tensão, são bem logradas.
Dany
sempre foi um pouco narciso: Olivier Rameau, protagonista da série
que criou com Greg, assemelha-se ao autor quando jovem, e a bela
Colombe Tiredaile teve por modelo Marcy, sua mulher. Colombe, mesmo
nos parâmetros mais rígidos da imprensa da época foi sempre uma
figura sexuada, que se vai erotizando à medida que o tempo o
permite. Por isso, quando da série de gags eróticos Ça
Vous Interèsse? –
que deu a Dany uma aura de homme
à femmes,
apesar de casado com a mulher que ama há mais de 50 anos, como fez
questão de frisar numa entrevista a propósito deste álbum –,
ninguém se admirou que a imagem decalcada de Colombe também por lá
aparecesse. Há quem veja em Paul um seu auto-retrato físico, no que
o desenhador só concorda parcialmente. A verdade é que Lapière
destinou o argumento a Dany e a mais ninguém; e, mutatis
mutandis,
a evocação de Colombe, isto é da mulher, Marcy, continua neste
álbum. No fundo, diga-se o que disser, Dany é um homem que fica.
Un
Homme qui Passe
Texto:
Denis lapière
Desenhos:
Dany
Edução:
Dupuis, Marcinelle, 2020
«Leitor de BD», jornal i