quarta-feira, 9 de setembro de 2020

nem tudo o que parece é

Uma história sobre o momento após a desaparição inesperada e súbita de alguém próximo, familiar, amigo, colega, o desasar que tal provoca e as dúvidas e suspeições para quem fica, quando o descaminho se dá em situações pouco claras, é o grande tema de L'Instant Aprés, uma edição Dupuis com argumento de Zidrou e desenhos de Maltaite.
Zidrou (Benoît Drousie, Anderlecht, 1962) é um dos mais profícuos autores da BD franco-belga; podendo o leitor português tem acesso ao seu trabalho em Verões Felizes (Arte de Autor), Ric Hochet -- substituir Duchâteau é obra -- ou O Menino Boavida, ambos na Asa. Éric Maltaite (Bruxelas, 1958), é filho de um nome histórico da Escola de Marcinelle, Will, (Tif e Tondu), sobre quem falámos há semanas, a propósito de Kim Kebranoz. Com incursões na BD erótica (ver As 1001 Noites de Xerazade, na Booktree, e Os Campistas, na Asa), revelou-se uma escolha excelente para dar forma a esta BD de atmosfera negra e tons quentes, integralmente a computador, uma vez que a artrite reumatóide de que padece obriga à economia de tecidos e articulações...

Nesta narrativa há duas histórias que se entrecruzam: a de Blandine com a de Houdain. Blandine, ex-hospedeira de bordo, stripper num cabaré em Charleston, Carolina do Sul, tem, durante uma actuação, um pressentimento de que algo muito grave acaba de suceder, envolvendo a sua irmã gémea, Aline. Esta, uma harpista clássica de primeiro plano, casada com um playboy, acabara de sofrer um acidente numa via de Paris. O marido é internado, mas o corpo de Aline desapareceu. Pouco depois, numa prisão francesa, Houdain, que cumpre pena pelo suposto assassínio da mulher, cujo corpo também nunca foi encontrado, recorta a notícia do mistério que envolve Aline. Tal como o marido desta, Houdain também clama inocência, e tal como ele, era igualmente visto como um mau cônjuge, que maltratava a mulher, enquanto que o outro aparece como um escroque, beneficiário de um seguro de vida em caso de viuvez. Durante os 13 anos que leva de prisão, Houdain recorta e cola num álbum todos os casos relatados pela imprensa sobre desaparecimentos inexplicáveis, tendo coligido cerca de 900. Na prisão tornou-se conhecido por "Houdini", pelos companheiros de cárcere e pelos guardas, nome do célebre prestidigitador que encenava o próprio desaparecimento. O encontro com Blandine, irrequieta e indagadora por natureza, é, pois, inevitável.

Trata-se um one shot, álbum único, e é uma pena. Blandine tem tudo para tornar-se e continuar um ícone ficcional de BD: inteligente, com mundo e sex appeal, marcada por uma dor mal resolvida em relação aos pais, que sempre manifestaram preferência pela filha cujo nome começava por A, enquanto ela era o eterno B... A história tem entre várias coisas, uma moral: nunca devemos deixar aqueles que amamos sem uma boa palavra, nunca sabemos quando os tornaremos a ver.
E, como brinde, um reaparecido que… desaparece: Martin Milan, uma homenagem.

L'Instant d'Aprés
texto: Zidrou
desenhos: Éric Maltaite
edição: Dupuis, Marcinelle, 2020

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