quarta-feira, 2 de setembro de 2020

um Lucky Luke redivivo

Publicado em 2016, primeiro na Spirou, revista em que 70 anos antes o cowboy que dispara mais rápido que a própria sombra se estreou, L'Homme qui Tua Lucky Luke, de Matthieu Bonhomme (Paris, 1973), conhece a primeira edição portuguesa neste ano da desgraça de 2020.
Para um ano pesado um título duro: pois Lucky Luke deparou-se com alguém capaz de o (a)bater?...
Podemos abordar este álbum de duas formas interessantes: a primeira, apenas como western, o que será sempre difícil, mesmo não se tratando de um trabalho de Morris (alvo, aliás de uma tocante homenagem no cemitério de Frog Town), ou do sucessor Achdé. E então teremos um western escorreito e com tudo, ou quase: cavaleiro solitário, cidadezeca (Frog Town) perdida no Oeste, nascida em torno do garimpo, forças da lei&ordem ineficazes e/ou ao serviço de gente pouco recomendável, populações ora assustadas ora enfurecidas, índios na retranca, duelos, enfim, todo o pathos do género – só faltando a Cavalaria –, incluindo citações e homenagens ao cinema, como nota em texto final João Miguel Lameiras, um dos editores. Estamos, assim, diante de um western puro, não humorístico – o humor está presente de forma cirúrgica e eficaz –, com um estilo semi-realista muito expressivo, mas em tons macios. Lembra, com as devidas distâncias, os primeiros álbuns de Buddy Longway, de Derib, sem a sujidade característica das pranchas de Giraud ou Hermann; quanto às fisionomias mais grotescas, elas trazem à memória o traço de Will Eisner.
Mas este é um álbum de Lucky Luke, numa incursão até certo ponto comparável à que Émile Bravo está a fazer com Spirou, e que temos vindo a acompanhar. A primeira evidência que apetece salientar neste trabalho de revisitação – tratava-se de um sonho antigo de Matthieu Bonhomme – é que o livro resulta num preito principalmente ao primeiro Lucky Luke, época pré-Goscinny, em que após as histórias iniciais, ainda pueris e muito influenciadas pela animação, Morris, entretanto delineia o perfil da personagem: um “pistoleiro bom”, herói solitário, corajoso e leal, impiedoso se for caso disso, traços que progressivamente se vão desvanecendo com Goscinny, à medida que ganham protagonismo Jolly Jumper, os Dalton e Rantanplan; com Bonhomme, o cavalo de Lucky Luke, volta a ser uma montada, especial é certo, mas sem os atributos delirantes que lhe foram outorgados pelo também criador de Astérix. A circunstância de o já célebre Lucky Luke, acabado de chegar à cidade, ser questionado pelas crianças que o admiram por Phil Deefer ou os Dalton – criados por Morris, a partir de uns Dalton que existiram mesmo e acabaram abatidos, como sucede de resto na primeira encarnação na série, é um indício desse recuo de Bonhomme às raízes do nosso cowboy. Com poucas referências à série canónica – e uma vez que o autor estava proibido de voltar a desenhar Lucky Luke com um cigarro na boca –, Mathieu Bonhomme revela-nos a razão de o nosso herói ter deixado de fumar. É, claramente, uma das edições do ano.

O Homem que Matou Lucky Luke
texto e desenhos: Matthieu Bonhomme
edição: A Seita, Prior Velho, 2020


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