terça-feira, 14 de junho de 2022

O Comissário Ricciardi



Criado pelo escritor napolitano Maurizio de Giovanni, em 2005, Luigi Alfredo Ricciardi, filho dos barões de Malomonte, originário de Cilento, no sul de Itália, é uma personagem que se estreia em edição portuguesa, na «Colecção Aleph», a mesma que publica Dylan Dog, misturando, tal como sucede com o “detective do pesadelo”, o policial e o sobrenatural.

Ricciardi detém uma estranha faculdade, herdada da mãe, que lhe inferniza a existência: junto de um cadáver, consegue ver os últimos momentos dessa pessoa, desde que vítima de morte violenta, crime ou acidente… Esta revelação obteve-a aos cinco anos diante de alguém assassinado por motivos passionais. Vida marcada por um negrume insuportável, Ricciardi é um solitário melancólico, para quem viver um amor é impossível. Conta com os cuidados de uma velha criada; e apenas com o adjunto, o sargento bonacheirão Raffaele Maione, encontra os breves momentos de distensão que a vida lhe permite.

A acção decorre no final dos anos 20, em pleno fascismo, que, nas três narrativas deste livro inaugural, apenas aparece de raspão (retratos do Duce e Vítor Manuel III, e uma alusão a um bando de rufias). Na primeira história, intitulada “Dez cêntimos”, recuamos uma década, para 1919, quando o jovem Luigi, chegado a Nápoles para cursar filosofia – a única disciplina que considera apropriada para o tormento em que vive --, se depara com a visão de uma criança doce que vendia flores na rua. Como não lhe bastasse ser pobre, era ainda indefesa; a maldade do mundo não lhe estava vedada; a narrativa seguinte, “Os vivos e os mortos”, temos a pedofilia escondida mas facilitada por quem se move livremente e sem suspeitas; finalmente, “Mammarella”, ou quando um menino-da- mamã – e que mamã... – deixa vir ao de cima anos de recalcamento.

O pano de fundo é a excessiva e luminosa Nápoles, estuante de vida e gente, cheia de uma buliçosa azáfama e, ao mesmo tempo, cenário de crime e morte. A cidade aparece como uma grande personagem, a verdadeira parceira das digressões quotidianas de Ricciardi, em cujos becos e encruzilhadas, desvãos e subterrâneos, fluem os dias, enquanto se desenrolam dramas junto a tabernas e salões aristocráticos, sacristias e bordéis, lugares nem sempre frequentáveis.

De Giovanni (Nápoles, 1958) não é um autor de fumetti; argumentistas adaptam a narrativa à linguagem BD; com que acerto, só conhecendo o texto matriz para o dizer; o trabalho dos desenhadores, mais expressionista Bigliardo, de traço mais aberto Siniscalchi, é eficaz na transposição para a imagem da atmosfera pesada de crime e morte numa cidade e país ruidosamente a caminho da guerra.


Comissário Ricciardi – Primeiros Inquéritos

textos: Sergio Brancato e Claudio Falco

desenhos: Daniele Bigliardo e Luigi Siniscalchi

edição: A Seita, Prior Velho, 2021.

«Leitor de BD»

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