domingo, 23 de fevereiro de 2020

a intimidade da dor

Não há respostas simples para o terrorismo islâmico, duas palavras que se contaminam e degradam, apesar da colecção de crimes do Ocidente (o Iraque ainda ontem) e de os próprios muçulmanos se contarem entre as principais vítimas: o fanatismo sectário e assassino é a casca grosseira resultante de um longo processo histórico de acção e reacção, ressentimento e revolta, em que os únicos inocentes são quantos foram abatidos.
Como enfrentar a morte estúpida de um ente querido, na sua inesperada aleatoriedade? Como gerir a impotência diante da súbita perda irreparável? Como lidar com a própria dor? Como desenhar a carnificina sem ceder ao mau gosto? Para um problema tão complexo e de difícil resolução (?), será sempre avisado encará-lo de frente, sem um maniqueísmo simplório. Foi o que tentou fazer a editora Des ronds dans l’O, de Vincennes, ao convidar seis autores de BD a desenhar número igual de depoimentos de familiares de vítimas do atentado de Nice, ocorrido a 14 de Julho de 2016. Nessa noite de celebração, um camião conduzido por um zombie fanatizado levou à frente tantos quantos pôde, massacrando 86 pessoas e ferindo 458.
O álbum Promenade de la Mémoire sairá em Março; no entanto, L’Immanquable, no seu último número, pré-publicou duas das seis narrativas, com entrevistas às respectivas autoras, histórias tocantes que perscrutam a intimidade da dor.
Em “Palavras para Aldjia – o relato de Seloua”, a irmã da narradora perde a vida no Passeio dos Ingleses, sob o olhar da filha, que não tem coragem de dar ela própria a notícia aos adultos da morte da mãe, numa intuitiva atitude de autoprotecção em face de expectáveis traumas futuros. Será a tia, Seloua, quem procurará saber de notícias de Aldjia, nessa aflição tendo defrontar-se com a fúria horrorizada dos franceses europeus, que a vêem, sendo magrebina, não como mais uma vítima, mas cúmplice. O trabalho de Jeanne Puchol é extraordinário, com todas as pranchas a preto e branco, excepto a última, funcionado a cor como virar de página em direcção ao apaziguamento, mas com a memória presente. As imagens relativas ao momento do atentado são todas indirectas, numa prancha com múltiplas vinhetas.
A segunda história, “A dor das palavras – O relato de Anne”, concebida por Céline Wagner em tons esfumados, fala-nos de uma pintora que à hora do atentado em Nice está com o marido e o filho num cruzeiro nos fiordes noruegueses, longamente preparado. Aí sabem do sucedido, com a preocupação de a filha, regressada havia pouco do estrangeiro, estar também ela na Promenade. Será ainda em solo norueguês que irão saber da sua morte, pelas notícias do jornal Nice-Matin. O desgosto insuportável interferirá no trabalho da pintora, em especial no quadro que deixara planeado para responder a um pedido daquela a quem dera a vida. Vida roubada assim, sem porquê .
Promenade de la Mémoire
Des Ronds dans l’O, Vincennes, 2020

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