segunda-feira, 3 de agosto de 2020

O Reizinho

Os monarcas que perduram no imaginário são os que passaram das medidas, sejam eles reais, de ficção ou mistos: Artur e a Távola Redonda, em Camelot; Lear, o louco que não reconheceu o (des)amor das filhas; Ivan o Terrível, na génese da Rússia de hoje; o Rei-Sol, que amansou as feras domésticas ensinando-lhes etiqueta. E que dizer de Afonso Henriques, ou Pedro I?…
O rei bonacheirão é mais raro. À memória ocorre de imediato o nosso D. Luís, “o Bom” ou “o Popular”, como ficou para a História, deixando correr o marfim da Regeneração, degenerando-se em “Rotativismo”, enquanto, na Cidadela de Cascais, traduzia Shakespeare (muito bem, ao contrário das más-línguas jacobinas) e tocava o seu violoncelo em trios e quartetos, muito mal, de acordo com a benevolência do médico da Cãmara real: “Senhor, é o quarteto mais ocidental da Europa!...”, não ousando outro qualificativo para elogiar… É claro que quem veio a pagar as favas foi o filho Carlos, contas, porém, doutro rosário.
Muitos reis há na BD, porém, talvez de nenhum emane tanto carisma quanto deste The Little King O Reizinho, na acertada versão do Brasil, país em que teve grande sucesso, com direito a revista própria e a uma rábula nele inspirada, interpretada por Jô Soares. Criado por Otto Soglow (1900-1975), nascido num bairro modesto de Manhattan, a personagem a que deu asas é uma caricatura medieval em tempos modernos – em que dragões e castelos coexistem com uma real esquadrilha aérea –, com insígnias indispensáveis à majestade: o manto com gola de arminho, a coroa – que José Sobral, autor da introdução ao livro de hoje, compara a um cone de gelado invertido –, coroa futurista que não tira nem para dormir, e uma barba obstinada. Ceptro não tem, mais provável será segurar numa das mãos um papagaio de papel ou um chupa. Baixote, rotundo, é atento ao bem-estar dos súbditos, em especial vagabundos, mas sabe quais são as sua prerrogativas. Em mais de 40 anos de reinado – estreou-se na New Yorker em 1931, findou quando morreu o autor –, toda a sua facúndia era gestual, nas situações bem exploradas por Soglow em traços tão sumários quanto expressivos. Este, que era um bem disposto, transpôs o humor inato para a criatura que lhe deu fama e sustento, depois de um curso de desenho por correspondência, pensando provavelmente nas suas personagens preferidas: Little Nemo, de Winsor McCay e Panfúcio / Bringing Up Father, no original, de George McManus, de quem já aqui falámos. E nestes dois extremos, entre o onírico e o grotesco, construiu Otto Soglow um pequeno universo (rainha, ministros, lacaios, cidadãos...) que provoca a gargalhada franca ou um sorriso irónico e pensativo.
Uma coisa é certa, leitores: haja o que houver, o Reizinho não se deixa manietar pela chatice da realidade. Um exemplo.

O Reizinho – Sua Majestade o Humor
texto e desenhos: Otto Soglow
edição: Opera Graphica, 2004.

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