O pior que pode fazer-se a
alguém não é necessariamente matá-lo. Podemos infernizar a vida
de uma pessoa de tal modo – humilhando, coagindo, torturando,
violando – e podemos infligir danos psicológicos de tal forma
violentos que a morte não será mais do que uma libertação. No
entanto, como qualquer bicho, o ser humano, maioritariamente,
recusa-se a morrer e dispõe- se a qualquer barganha para obviar o o
enfrentamento do nada que adivinha ou teme.
Desde
sempre – das sociedades tribais às democracias ocidentais –
houve indivíduos a eliminar, em nome dum bem maior, a coberto da
tranquilizadora noção da “razão de estado”. Há momentos em
que tal é necessário para salvaguarda de um bem maior, como o é a
tranquilidade dos cidadãos, que não precisam de saber todo o mal
que os ameaça, sob pena de pânico e colapso generalizados. Para
isso existe o submundo dos serviços secretos com as suas conexões,
onde polpa o assassino a soldo, recrutado para execuções cirúrgicas
à margem da lei, também para não perturbar a boa consciência
cívica do cidadão. Uma consciência relativa, é certo, que não se
priva do seu móvel de madeiras exóticas da Amazónia, do creme para
barrar à base de óleo de palma, mesmo quando os orangotangos são
tão fofos, e muito menos do telemóvel ou smartphone, cujo cobalto é
extraído por crianças escravizadas pelos senhores da guerra na
África Central.
Estas
reflexões, embora nalguns casos partilháveis, não são deste
leitor, mas de Denis (acreditemos que assim se chama...), o
anti-herói solitário, sem escrúpulos ou problemas de consciência,
mas que, contudo, se interroga – para justificar-se e consolar-se
com a ideia de que afinal ele não é assim tão diferente do comum
dos cidadãos. Os longos monólogos que caracterizam a personagem são
dados com grande mestria por Matz (nom de plume bd
do escritor Alexis Nolent) e disposto na prancha, com
comprovada eficácia, por Luc Jacamon, os criadores da série, em
1998. O grande problema: este patife torna-se-nos por vezes
simpático...
Com
uma extensa folha de serviços, na Europa e América do Sul, O
Assassino encontra-se, neste
álbum número 14, numa cidade portuária francesa, em que um
assessor municipal trabalha para o suposto bem do seu concelho, de
dia, e controla o tráfico de cocaína de noite, com um à vontade
que faz suspeitar que outras forças mais poderosas o sustêm. O
homem não ganhou apenas poder; com uma rede alargada de contactos,
nem a polícia ou os tribunais o vêem; a impunidade é um facto, o
que é inaceitável para o... estado de direito. Há quatro meses que
o assassino tem por
disfarce um emprego numa grande companhia da região, a fazer contas
e mapas Excel. Discreto, talvez demasiado, sem vida social conhecida,
ideal para um assassino profissional a soldo do Estado, por portas
travessas. Talvez demasiado discreto; felizmente a coordenadora dos
Recursos Humanos está ali à mão...
Personagem
estranha, fisicamente pouco expressiva, este assassino
tornou-se uma personagem de referência.
Le
Tueur – Affaires d’État. T.
I Traitement Négatif
texto:
Matz
desenhos:
Jacamon
edição:
Casterman, Tournai, 2020
Sem comentários:
Enviar um comentário