sexta-feira, 15 de maio de 2020

problemas de consciência

O pior que pode fazer-se a alguém não é necessariamente matá-lo. Podemos infernizar a vida de uma pessoa de tal modo – humilhando, coagindo, torturando, violando – e podemos infligir danos psicológicos de tal forma violentos que a morte não será mais do que uma libertação. No entanto, como qualquer bicho, o ser humano, maioritariamente, recusa-se a morrer e dispõe- se a qualquer barganha para obviar o o enfrentamento do nada que adivinha ou teme.

Desde sempre – das sociedades tribais às democracias ocidentais – houve indivíduos a eliminar, em nome dum bem maior, a coberto da tranquilizadora noção da “razão de estado”. Há momentos em que tal é necessário para salvaguarda de um bem maior, como o é a tranquilidade dos cidadãos, que não precisam de saber todo o mal que os ameaça, sob pena de pânico e colapso generalizados. Para isso existe o submundo dos serviços secretos com as suas conexões, onde polpa o assassino a soldo, recrutado para execuções cirúrgicas à margem da lei, também para não perturbar a boa consciência cívica do cidadão. Uma consciência relativa, é certo, que não se priva do seu móvel de madeiras exóticas da Amazónia, do creme para barrar à base de óleo de palma, mesmo quando os orangotangos são tão fofos, e muito menos do telemóvel ou smartphone, cujo cobalto é extraído por crianças escravizadas pelos senhores da guerra na África Central.

Estas reflexões, embora nalguns casos partilháveis, não são deste leitor, mas de Denis (acreditemos que assim se chama...), o anti-herói solitário, sem escrúpulos ou problemas de consciência, mas que, contudo, se interroga – para justificar-se e consolar-se com a ideia de que afinal ele não é assim tão diferente do comum dos cidadãos. Os longos monólogos que caracterizam a personagem são dados com grande mestria por Matz (nom de plume bd do escritor Alexis Nolent) e disposto na prancha, com comprovada eficácia, por Luc Jacamon, os criadores da série, em 1998. O grande problema: este patife torna-se-nos por vezes simpático...

Com uma extensa folha de serviços, na Europa e América do Sul, O Assassino encontra-se, neste álbum número 14, numa cidade portuária francesa, em que um assessor municipal trabalha para o suposto bem do seu concelho, de dia, e controla o tráfico de cocaína de noite, com um à vontade que faz suspeitar que outras forças mais poderosas o sustêm. O homem não ganhou apenas poder; com uma rede alargada de contactos, nem a polícia ou os tribunais o vêem; a impunidade é um facto, o que é inaceitável para o... estado de direito. Há quatro meses que o assassino tem por disfarce um emprego numa grande companhia da região, a fazer contas e mapas Excel. Discreto, talvez demasiado, sem vida social conhecida, ideal para um assassino profissional a soldo do Estado, por portas travessas. Talvez demasiado discreto; felizmente a coordenadora dos Recursos Humanos está ali à mão...

Personagem estranha, fisicamente pouco expressiva, este assassino tornou-se uma personagem de referência.



Le Tueur – Affaires d’État. T. I Traitement Négatif

texto: Matz

desenhos: Jacamon

edição: Casterman, Tournai, 2020


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