segunda-feira, 20 de julho de 2020

um amor à face da exclusão

Favela”: sabemos o que é, mas não a origem da palavra... O Morro da Providência, também conhecido por Morro da Favela é a mais antiga aglomeração do género no Rio de Janeiro, iniciado por veteranos da Guerra de Canudos, a quem foram prometidas casas quando regressassem das operações. Fartos de esperar, ocuparam uma elevação no local da Providência, lembrando o morro da Bahia – onde vicejava a favela, tipo de arbusto endémico –, de onde faziam pontaria aos homens de Antônio Conselheiro, “profeta” milenarista que sublevou os miseráveis da região, dando origem às campanhas de Canudos, descrita numa obra-prima da nossa língua, Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, e também motivo do extraordinário romance de Mario Vargas Llosa, A Guerra do Fim do Mundo (1981).

Morro da Favela, de André Diniz, agora em segunda edição portuguesa, aumentada, é a quadrinização (palavra horrível) do relato autobiográfico do fotógrafo Maurício Hora (1968), nado e criado no morro, filho de um bicheiro tornado um dos primeiros traficantes de maconha do local, que, após duas prisões, decide poupar-se e à família, passando a trabalhar na estiva. De acordo com os critérios de hoje, Maurício cresceu numa família disfuncional. Pai pouco dado a rotinas, mas sempre presente quando não estava preso, mãe com episódios esquizóides, irmãos, além dos avós, referências de estabilidade. O que Maurício Hora transmite através dos quadrinhos de André Diniz, traduz-se, por paradoxal que pareça, numa certa felicidade, uma nostalgia por esse país da infância, em que o amor existia, apesar dos crimes, do medo, em particular da polícia, boa parte comportando-se como bandidos com farda e melhor armados. Acima de tudo, Maurício veicula uma grande empatia, sempre vizinha do amor, que preenche também o coração de Maurício – demonstra-o o fotógrafo e o activista sócio-cultural. Na Favela há gente como todas as outras, gente boa e de trabalho, quantas vezes alvo da violência do Estado, ou capturadas pelo tráfico, que ali dita a lei; e há sobretudo uma invisibilidade para quem vive no asfalto, junto à linha de costa, circunstância que o fotógrafo tem vindo a contrariar, como artista e dinamizador social, procurando dar voz a quem a não tem.
Se a matéria de que se faz esta narrativa – o depoimento de Maurício Hora – é só por si de primeira grandeza, que dizer do trabalho de André Diniz? Em primeiro lugar a estrutura narrativa disposta como uma espécie de romance de formação. Do ponto de vista gráfico, a opção pelo fundo negro realça as linhas dos desenhos, os espaços em branco, as notáveis expressões das figuras, integralmente num preto e branco que nos faz colar os olhos às páginas, um percurso que termina com uma única vinheta colorida, o sorriso de Dona Iracema e o lado bom e fraterno da entreajuda em comunidade.
André Diniz e Maurício Hora pertencem àquela família de artistas cuja estética é servida por uma ética. O mundo é demasiado interessante na sua complexidade para confinar-se aos arredores do umbigo.

Morro da Favela
texto e desenhos: André Diniz
fotografias: Maurício Hora e
Augusto Malta / Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
2.ª edição, Polvo, Lisboa, 2020

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