terça-feira, 28 de julho de 2020

um dia de fúria

Do Extremo-Oriente à Europa, o vírus foi mais rápido a chegar que as pulgas no lombo dos ratos da Peste Negra. Em Itália, caixões amontoados, médicos e enfermeiros esgotados; logo depois, a Espanha, razia nos lares; por cá, toda a gente em casa ainda antes de o Governo mandar. Só foi bom para os cães, nunca antes tão passeados; havia quem os tivesse para alugar àqueles que legalmente queriam desconfinar sem ter a polícia à perna.
Pelas páginas de A Batalha, “jornal de expressão anarquista” fundado há um século, chega-nos um encarte para dobrar e montar com uma BD de Max (Barcelona, 1956), um do nomes mais destacados da BD espanhola, desde os tempos do fanzine underground fotocopiado ao reconhecimento do Poder, atribuindo-lhe o primeiro Premio Nacional de Cómic, em 2007. Um luxo, portanto.
Desgastado, à terceira semana o autor amarrou a paciência diante da televisão e dos conteúdos gratuitos da internet e apresentou um panfleto e catarse sobre o efeito que estes dias desgraçados tiveram sobre si, desabafo “escrito depressa e mal em Abril de 2020, durante o Confinamento”.
Manifestamente Anormal transmite-nos toda a fúria duma personagem que se supõe ser alter ego de Max, e ninguém escapa: a começar pelo rei até aos reles concidadãos que deixavam bilhetes à porta da casa do vizinho profissional de saúde, para que se pusesse ao largo, depois de vir do trabalho onde arriscava a vida para salvar as dos outros; ou ainda os prestimosos denunciantes de varanda, que, após palminhas dirigidas aos heróicos médicos e enfermeiros (que certamente viviam noutro prédio), telefonavam à polícia apontando este e aquele que andavam na rua ilegalmente. Manifesto desapiedado contra a anormalidade do tempo pandémico, cáustico e vociferante com os que se iam esquecendo de ser pessoas para se transformarem em bichos acossados pelo medo.
O desenho minimalista é de grande eficácia e a “mensagem” acerta em cheio no alvo: nós, os confinantes até nova ordem de soltura, enchendo-nos de doestos e pontapés no traseiro, para que não nos esqueçamos que estar engaiolado é mais próprio de animais de capoeira.
Mas como a liberdade dos outros é pelo menos tão preciosa quanto a nossa – em especial a liberdade de poder andar livremente na rua sem que um desmascarado inconsciente nos faça a doação das suas gotículas, enviando-nos directamente para o cemItério, que fazer?, perguntamos.
O nosso herói esgotado de tanto vociferar, fica-se desapontado pelo alvéolo que lhe serve de habitação, e adormece.

Manifestamente Anormal
texto e desenhos: Max
encarte de A Batalha #288-289
Lisboa, Centro de Estudos Libertários, Mar/Jun 2020

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