sábado, 10 de outubro de 2020

um homem de palavra


 Tal como o ser humano, também as civilizações temem o fim e elaboram sobre o prazo de validade. Do Antigo Testamento às expedições a Marte, com calamidades naturais, guerras, fomes, pestes, invasões, com tudo isso a humanidade se defronta desde que deu conta de si própria. A arte é fértil, tornando-se´o imaginário pós-apocalíptico uma categoria como qualquer outra, nas suas variantes. E a BD não fica atrás, destacando-se no campo franco-belga, a séries de Simon du Fleuve, criada em 1973 por Claude Auclair (1943-1990) e Jeremiah, de Hermann, em curso de publicação, ambas tendo por base um cenário pós-catástrofe, consequência de guerras nucleares ou conflitos étnicos generalizados.

Le Convoyeur é uma nova série do género, com argumento de Tristan Roulot (Rennes, 1975) e Dimitri Armand (Orleães, 1985), tendo a sua estreia, em Abril deste ano, coincidido em cheio com o início do pânico sentido em boa parte da Europa provocado pela Covid-19, uma curiosa coincidência.

Um vírus desconhecido emerge do centro da terra, atacando os metais, corroendo lentamente todos os utensílios, todas as estruturas edificadas assentes no betão. Recurso agora escasso, os homens têm de readaptar-se, regressando ao couro e à madeira. De pé ficaram apenas as estruturas que vinham do Antigo Regime, os castelos, as fortificações. Mas este vírus interfere também no metabolismo, originando terríveis anomalias e mutações, atingindo elevada percentagem da população. Neste primeiro tomo, intitulado Nymphe, percebemos a pulverização populacional num cenário medieval de paliçadas e castelos coexistindo com vestígios de ruínas da modernidade: carcaças de automóveis, edifícios meio desabados. O poder exerce-se em bandos, havendo ainda uma poderosa organização sacerdotal, cujos contornos não surgem ainda bem definidos neste episódio inicial. Sabe-se apenas que percorrem as comunidades, fortemente armados , à caça de crianças sãs e dos progenitores, capturando-os para futura reprodução de indivíduos saudáveis – a única possibilidade de salvar a humanidade, a procriar seres repelentes (a bela Ninfa, metade mulher, metade aranha é um deles) ou tornada estéril. Na floresta, elemento sempre misterioso e inacessível, vivem predadores cegos, espécie de dinoprimatas da mata, chacinando tudo o que se aproxima da fímbria do seu território

E o herói, no meio disto tudo? O Convoyeur (o distribuidor) é um solitário façanhudo, que aceita todas as missões que lhe são confiadas, aparentemente sem grandes dilemas morais. “A minha palavra é a minha lei”, diz para consigo. Em troca, o contratante compromete-se a engolir um peculiar ovo que aquele lhe oferece... Porquê, não sabemos; não é difícil ver naquele alimento um símbolo de renascimento. Mas respostas para estas e outras interrogações, só nos álbuns seguintes.


Le Convoyeur – tomo 1 – Nymphe

argumento: Tristan Roulot

desenhos: Dimitri Armand

edição: Le Lombard, Bruxelas, 2020

«Leitor de BD», jornal i

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