domingo, 20 de dezembro de 2020

no lugar do morto




Uma jovem mulher sai de casa apressada e definitivamente, sem se despedir, aproveitando a circunstância de o companheiro estar no duche. Vemo-la afastar-se do prédio, num daqueles pátios milaneses a lembrar as vilas lisboetas, outrora (ou ainda) populares. À sua espera, num saudoso Peugeot 504, está, Federico, amante para quem se bandeou. Francesca, raparigaça estouvada, leve e fresca, tontinha q.b. ou com os alqueires mal medidos, tanto faz, a pregar uma mentira ao rapaz: “foi compreensivo, não fez cenas”, aludindo à suposta reacção de Zardo, deixado sob o chuveiro.

Federico não sabia ainda que teria de regressar ao local para satisfazer um capricho da amante: esta esquecera-se de um creme anticelulite especial, só disponível no estrangeiro... (estamos ainda na década de 1990); era forçoso lá voltar, e que fosse Federico, coisas de machos. Ao invés do creme, trará o cadáver de Zardo, que encontra degolado, dum só golpe bem desfechado. Chamar a polícia?, não chamar?... que justificação daria para a sua presença ali, junto do cadáver ainda fresco? Dizer que era o homem por quem a mulher do defunto trocara, não ajudaria; e via já o sobrolho desconfiado dum agente, inquirindo com ironia, se o morto acaso usava creme anticelulite... Assim, depois do estupor, a precipitação – cadáver numa mala com mãozinhas de fora... E a partir daqui o argumento de Tiziano Sclavi – o criador de Dylan Dog – conduz-nos através de uma trama em que tudo será possível numa só noite, em orgia de violência, mais sangue que sexo, jogando às escondidas com o leitor, que segue ávido a evolução dos bonecos pranchas afora, desconfiado que Sclavi quer fazer de Machado de Assis, que há mais de cem anos tem posto toda a gente perguntar-se se Capitu traiu ou não Bentinho. Quem matou Zardo, afinal?, e que homem era esse, que quase toda a gente confunde agora com Federico, o que passou a achar-se no lugar do morto? – ou seja: ficou com a mulher, com o nome (agora ele é Zardo, os velhos vizinhos confundem-nos) e até a generosa herança materna, entretanto levada a falecer, que a si irá parar...

Baseado num argumento datado dos anos oitenta, adaptado ao cinema e publicado sob a forma de romance, intitulado Nero. (1992), Sclavi deu-nos um thriller denso, insidioso, negro. Tudo o que parece poderá ser, oferecendo diversas possibilidades, graças também à infração dos códigos dos quadradinhos no que respeita ao desvio do fio narrativo em desafio ao leitor, das analepses às (pretensas?) alucinações: vinhetas com cercaduras esbatidas, ou mesmo sem elas, filacteras com outro formato, sfumatto ou alteração ou ausência de cor, nada disso está no trabalho estupendo e minucioso de Emiliano Mammucari (Velletri, Roma, 1975), que para este trabalho trocou as aplicações informáticas pelos velhos pincéis e marcadores, significando também um regresso à própria juventude, ao tempo histórico em que a acção decorre .


Zardo

texto: Tiziano Sclavi

desenho: Emiliano Mammucari

edição: Sergio Bonelli Editore, Milão, 2020

«Leitor de BD»

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