Muito se tem falado nas duas Américas, a propósito das eleições presidenciais nos Estados Unidos. É uma divisão que vem de longe, ainda antes da Guerra da Secessão (1861-65). O pretexto principal foi o da permanência da escravatura nas províncias meridionais, dependentes economicamente das culturas do tabaco e principalmente do algodão, conflito que estala com a eleição de Lincoln em 1861, um aberto abolicionista. Mas a questão é menos simples do que parece: houve estados esclavagistas a combaterem pelo Norte. em que prevalecia uma ideia mais centralizadora do estado, a União, onde prosperava uma elite industrial e financista, com grandes universidades e centros fabris que impulsionavam as inovações tecnológicas; do outro, a Confederação, de visão mais descentralizada, porventura romântica – assim os derrotados e seus descendentes gostam de salientar, forma de tentar esconder a nódoa ética de uma sociedade, por vezes faustosa, assente no trabalho de quatro milhões de negros escravizados. O resultado será um conflito fratricida arrepiante, 620 mil mortos – nunca os Estados Unidos conheceram um número aproximado de baixas em qualquer guerra –, um ressentimento no campo derrotado que não se desvaneceu e abjecções como o Ku Klux Klan, criado após a derrota, ou as infames leis segregacionistas.
Isto e muito mais num número da revista GéoHistoire, dedicada à série humorística Os Túnicas Azuis / Les Tuniques Bleus, criada em 1968 para a revista Spirou por Raoul Cauvin (Antong, 1938), desenhada por Louis Salvérius (1933-1972) e continuada a meio do quarto álbum e até hoje por Willy Lambil (Tamines, 1936). Após a partida de Morris para a revista Pilote, o semanário precisava de um western que preenchesse a vaga deixada por Lucky Luke. As primeira aparições dão-se em gags, história breves em torno a questão índia. É já com Lambil que Cauvin vai explorar o filão da Guerra da Secessão, contando com mais de sessenta álbuns e 22 milhões de exemplares vendidos. Tal sucesso, deve-se aos dois protagonistas, de que falaremos em pormenor noutra ocasião – o cabo Blutch, o anti-herói, e o sargento Chesterfield –, mas também ao rigor com que Cauvin se documentou sobre tantos aspectos da contenda que, iniciada ainda à maneira das campanhas napoleónicas, será a primeira a prefigurar o calvário Grande Guerra de 1914-18, com as suas carnificinas (51 mil mortos na batalha de Gettysburg...), os primeiros couraçados e submarinos rudimentares, a vulnerabilidade das cidades, os motins... E foi também a primeira a ser objecto de reportagem fotográfica, através da lente de Mathew Brady, cujos imagens aí estão, disponíveis à distância de um clique.
Menos popular entre nós, por razões de história editorial, os artigos e entrevistas do número da GéoHistoire, não só enquadram historicamente esta longa série belga, como é ele próprio uma boa introdução a este universo dos Túnicas Azuis, uma forma humorística e leve – mas não ligeira – de tratar a maior guerra que a América viveu, em casa.
Les Tuniques Bleues et la Guerre de Sécession
GéHistoire #53
Outubro-Novembro de 2020
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