Os bosques são sempre sítios perigosos, no imaginário popular. Basta passar os olhos pelas histórias tradicionais, da Branca de Neve à Casinha de Chocolate. Quem vive na deste livro, um coelho, lê Camus e Tintin, e a casa na orla bosque, à maneira das dos hobbits reage ao que se passa lá dentro. BD com muitas onomatopeias, um delírio gráfico e conceptual do quebequense Thom: Casa Rodeo, Pow Pow, Sain-Laurent (Quebeque), 2020.
domingo, 28 de fevereiro de 2021
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021
ainda a V2
No Cairo, em 1951, um antigo engenheiro que integrou o complexo desses foguetes vindicantes é localizado sob identidade falsa. Como em tempo de guerra fria não se limpam nazis, a CIA procura recrutar os seus serviços, a bem ou a mal. A CIA, e não só, pois nazis não se limpam, só os cadastros, quando é preciso. La Guerre Invisible – T. 1 L’Agence, de Frank Giroud e Olivier Martin, edição Rue de Sèvres, Paris, 2021.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021
pode alguém ser quem não é?
Há quem sonhe mudar o mundo e quem tenha por objectivo de vida fazer férias de sonho. E há ainda quem queira somente esta coisa comezinha e tão difícil que é a sua própria autodeterminação.
Esta é a história de Bernardo Duarte (B.D., nas iniciais...). Bernardo, que no mais fundo do seu ser é um punk (linha The Clash), não passava de um vendido, ou pelo menos, um acomodado,trabalhando como informático contratado por uma empresa de outsorcing num departamento duma firma qualquer, pobre diabo que nem sabe quem é o patrão. Despertador todos os dias às sete, pontualidade imaculada. Um dia dá-se o clic, quando colegas e chefe insistem num fim-de-semana de “team buiding”, estratégia superdivertida para aumentar o “commitment”, ou fazer de adultos parvos amestrados. Quase um Michael Douglas em Um Dia de Fúria, Bernardo manda trabalho e colegas àquela parte e decide abrir uma livraria de banda desenhada em Alverca, a sua cidade.
A Loja, de Derradé (pseudónimo de Dário Duarte, Lisboa, 1971), um informático que adora a profissão, diz-nos a badana, é a materialização em quadradinhos do desejo de ter uma livraria de BD, e também uma homenagem bem humorada aos Clash e ao seu rock de combate. Todas as oito histórias têm títulos da banda: “This Is Radio Clash” é um bonito e vigoroso ajuste de contas com quem desdenha da banda desenhada; “The Magnificent Seven” – ou as sete da manhã quando toca o despertador – mostra a insurreição de Bernardo que referimos atrás, tiro ao alvo no escritório à alienação carreirista-consumista; “Should I Stay Or Should I Go» revela a rápida postura na alheta de Carmen, a mulher de Bernardo, após saber que este se despedira; em “Long Time Jerk” surge-nos um sentencioso que crê a BD deseducativa, mas não encontra outro sítio para comprar um livro para oferecer a uma criança senão naquela loja; em “Rock The Casbah”, escrita quando o aiatola Khomeini proibiu o rock no Irão, Derradé aproveita para meter-se com os puritanos de cá: a montra do dia de São Valentim está ricamente decorada com álbuns de Manara, Serpieri, Crumb, Alan Moore, o que motiva uma manifestação de gente pia, com o padre, tolerante e apreciador de quadradinhos, a salvar a situação; em “Death Is A Star”, ficamos a saber o que acontece aos grandes coleccionadores quando a morte corta a relação com a biblioteca de uma vida; “Career Opportunities” é uma brincadeira em circuito fechado com o mundo da BD portuguesa. O ciclo fecha-se em “Lost In The Supermaket”: Carmen reaparece dez anos depois, trazendo companhia.
De dimensão e conseguimento diversos, Derradé faz-nos sorrir, rindo-se também de si próprio, sinal de inteligência e sanidade mental.
A Loja
texto e desenhos: Derradé
edição: Polvo, Lisboa, 2019
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021
Gotlib, a melhor colheita
Marcel Gotlib (1934-2016) é um dos maiores nomes da BD satírica, além de personagem fascinante. Fundador de L’Echo des Savannes, após abandonar a Pilote, em ruptura com Goscinny, com quem colaborara estreitamente, em 1975 lança, com outros autores, mais uma revista marcante, em curso de publicação, Fluide Glacial. Com esta chancela saiu recentemente uma antologia das melhores histórias aí publicadas, escolhidas por autores como Binet, Fabcaro,
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021
Welles & Wells
Quando em 30 de Outubro de 1938 Orson Welles emite aos microfones da CBS a adaptação radiofónica do extraordinário romance de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos (1898), pondo a América em pânico, um homem mata a mulher e o filho, suicidando-se em seguida, para escapar aos invasores marcianos. Baseado numa reportagem do jornalista David Burroughs, Laurent Galandon e Jean-Denis Pendanx oferecem-nos um belo trabalho que levanta interrogações éticas, hoje ainda mais na ordem do dia. A Fake Story, Futuropolis, Paris, 2020.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021
crescer com os Schtroumpfs
Uma série pedagógica, destinada a um público infantil, orientada pelo filho de Peyo, Thierry Culliford, com argumento de Falzar e desenhos de Antonello Dalena. O sexto tomo trata da mentira: Le Schtroumpf qui Racontait des Mensonges, Le Lombard, Bruxelas, 2021.
uma celebração da BD
Mademoiselle J. é uma nova série de BD franco-belga com tudo para vingar, desde logo pela indiscutível proficiência dos autores: Yves Sente (Bruxelas, 1964), um dos principais argumentistas actuais (Blake e Mortimer, Thorgal, XIII, O Guardião...) e Laurent Verron (Grenoble, 1962), escolhido por Roba para continuar Boule e Bill. Aparecida num dos estupendos one shot de Spirou em 2017, Il s'Appelait Ptirou, como confidente tornada amiga de um jovem groom empregado num paquete para enfrentar uma vida adversa, a adolescente Juliette, impôs-se aos autores pela graça e carisma, decidindo recuperá-la, jovem adulta, prestes a licenciar-se em literaturas modernas, pretendendo fazer carreira como repórter. Estamos em Paris, ano de 1937, onde tudo o que acontece não é nada comparado com o que está para acontecer.
É difícil encontrar na História década mais nefanda que a dos anos 30. Inaugurada com a Grande Depressão em curso (o crash de Wall Street, em tudo semelhante ao do subprime de 2008), fazendo pagar a ganância de uns quantos lançando milhões na miséria, virá a culminar com o vírus totalitário. A França da Frente Popular organiza a Exposição Universal, montra de propaganda dos regimes que já se defrontam no país vizinho, a Espanha de Guernica, que Picasso expôs ali mesmo. Frente a frente, os pavilhões alemão e soviético: de um lado, a icónica escultura de Vera Mukhina, um casal dinâmico erguendo a foice e o martelo sugerindo a aliança operário-camponesa, marcha imparável da revolução mundial; do outro, o pavilhão desenhado por Albert Speer – atrasando propositadamente a conclusão para ficar uns metros acima do congénere rival – defronta-o com a suástica sob uma águia colossal. Confronto nesta altura para francês ver: o Pacto Molotov-Ribbentropp estava aí ao virar da esquina...
Uma jovem repórter nascida em berço de ouro, filha de um armador de frota petroleira e órfã de mãe, com os olhos bem abertos e enfrentando o machismo das redacções, vai conseguir um furo, provando que os arqui-inimigos estavam a conversar. As suspeitas de que Hitler prepara a guerra, procurando aumentar as reservas energéticas, ganha peso; e Juliette, agora assinando, Mademoiselle J., vê-se ele própria envolvida nesta alta jogada no tabuleiro internacional, na dupla condição de jornalista e filha e accionista por via materna, herdeira casadoura cobiçada.
O entrosamento de Sente e Verron é perfeito. Celebração da BD, sim; também porque os autores fizeram ressurgir a figura de Oncle Paul, narrador de histórias que fez as delícias das crianças francófonas no Pós-guerra, criada por Charlier (ainda na semana passada aqui referido, a propósito de Barba Ruiva). No fim, a aparição dum senhor Robert, companheiro de viagem transatlântica de Juliette em 1929, e desse pequeno groom desaparecido em circunstâncias dramáticas. Este viajante ficará conhecido como Rob Vel, e criará uma personagem que homenageará o rapaz. Estamos já em ‘38 e vai chamar-se Spirou.
Mademoiselle J – Je ne Me Marierai Jamais
texto: Yves Sente
desenhos: Laurent Verron
edição: Dupuis, Charleroi, 2020
domingo, 14 de fevereiro de 2021
“Isso é que eles não dizem...”
Nunca a confusão mental esteve tão espalhada por este mundo de Cristo como agora, com as redes. Do mundo virtual para o mundo real, passa toda aquela a assertividade e autocomplacência. O livro de Ricardo Santo, Planeta Psicose é constituído por um conjunto de histórias curtas e satíricas sobre este outro vírus da “pós-verdade”, das teorias da conspiração às charlatanices “esotéricas” e à pseudociência. Edição Escorpião Azul.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021
desintegração racial
Na primeira metade do século XIX, no Connecticut, uma professora abolicionista distinguiu-se por dirigir uma escola destinada a alunas negras. Para os escravocratas, negros instruídos representavam a ameaça de, afinal, poderem achar que não eram inferiores... Hoje considerada heroína Prudence Crandall (1803-1890), teve de arrostar com a violência e as ameaças do costume. Mark Twain foi um dos seus mais destacados apoiantes. A história é contada por Wilfrid Lupano (texto) e Stéphane Fert (desenho) em Blank Autour, Dargaud, Paris, 2021.
advogado do Diabo
Hitler, o tubarão de Spielberg, Darth Vader, Donald Trump, Venom, Jesus Cristo, Khadafi, Kim Jong-un, King Kong, entre outros são alguns dos clientes deste advogado que não por acaso faz lembrar o célebre Jacques Vergès (defensor de Klaus Barbie, Carlos o Chacal e Pol Pot, entre outras lindezas. Avocat du Diable, texto e desenhos de Téhem, edição Delcourt, Paris, 2021.
domingo, 7 de fevereiro de 2021
«O Demónio das Caraíbas»
«Numa manhã de 1715, em pleno Mar das Caraíbas...» A voz do narrador neste recitativo da vinheta inicial de Barba Ruiva – O Demónio das Caraíbas introduz o tempo e o espaço da acção, encimando a imagem de um galeão espanhol em águas ainda alterosas após a passagem de um tornado. É um história de bucaneiros, ainda na idade de ouro da pirataria.
A Europa guerreava-se, no continente e nas possessões ultramarinas; e até a Rússia, que emerge como grande potência neste período, impor a doutrina da neutralidade armada, a que Portugal adere, o Atlântico era uma balbúrdia: o império luso aos bocados, os espanhóis, passado o Siglo de Oro, tornavam-se presas mais ou menos difíceis para ingleses e franceses, quem realmente mandava no Ocidente, com os holandeses pelos interstícios a abocanhar os restos. Pelo meio, aproveitando-se da confusão, com bases naturais nos arquipélagos das Antilhas, uma chusma fora da lei com a cabeça a prémio, aventureiros, renegados, fugitivos, desertores, revoltados, interceptava os barcos que cruzavam o oceano,
Em 1959, com a criação da revista Pilote, a dupla Jean-Michel Charlier (1924-1989) e Victor Hubinon (1924-1979) há muito que desenvolvia uma profícua colaboração no semanário Spirou: Buck Danny, o ás da aviação surgido em 1947 e que ainda hoje se publica, é a criação mais bem sucedida desse período; uma outra, sobre o corsário Surcouf (1773-1827), permitiu que reunissem uma vasta documentação para empreenderem uma sólida série de flibusteiros. Nasceu assim o pirata Barba Ruiva, comandante audaz, talentoso e cruel, que não fazia prisioneiros.
O galeão que avistámos na primeira vinheta será presa dos piratas do “Falcão Negro”, assim se nomeava o brigue, navio rápido de dois mastros, com seis a dez canhões, apropriado tanto para a abordagem aos pesados navios mercantes, como retiradas bruscas para dentro do arquipélago caribenho, em caso de perseguição de navios de armada hostil. A bordo do barco espanhol seguia um casal com um filho de tenra idade, que não tardará em ficar órfão, ou quase, uma vez que o pirata o adoptará. Eric Lerouge, assim vai chamar-se, será instruído por um velho pirata culto e perneta, Três-Patas, e por Babá, um homenzarrão negro, ex-escravo libertado por Barba Ruiva. E aqui o leitor já estará a vislumbrar a imagem dos desastrados piratas de Astérix, que pela difusão mundial que conhece o gaulês, tornou a paródia mais célebre que o original...
Charlier assimilou muito bem o espírito insurrecto e comunitário da pirataria, que conjugava disciplina férrea e desbragamento selvagem; Hubinon, que era uma máquina a desenhar aviões e couraçados, continuou exímio com os veleiros, perseguindo-se nesse mar sem lei. Tendo passado por vários autores, a série continua a publicar-se na mesma editora, a Dargaud.
Barba Ruiva- O Demónio das Caraíbas
texto: Jean-Michel Charlier
desenhos: Victor Hubinon
edição: Meribérica / Liber, Lisboa, s.d.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021
a batida
Hassan é um jornalista que procura infiltrar-se num grupo obscuro de cangalhada esotérica e ligações suspeitas à extrema-direita. Anualmente, “Les Blanchistes” organizam uma batida de caça que é um momento iniciático cheio de alusões a um primitivismo natural que viceja em certas cabecinhas. Para o efeito, o repórter contacta com uma antiga colega de escola, filha de um deles, mas que não lhes acha grande graça, trazendo-lhe algumas recordações inquietantes. Battue, argumento de Lilian Cocquillaud e desenhos de Marine Levéel, edição 6 Pieds sur Terre, 2020.