Ao
contrário da literatura e do cinema, o tópico da emigração não
tem particular relevo na BD. E no entanto, como fenómeno humano, ela
está pejada de situações conflituais romanescas inesgotáveis, Num
dos grandes romances portugueses do século XX, Emigrantes (1928),
de Ferreira de Castro, há uma cena decisiva sobre a angústia do
desterro voluntário, quando o rebanho vindo de vários pontos do
território e já a bordo do barco que os leva ao Brasil, vê Lisboa
a afastar-se, talvez até nunca mais: “eles sentiam,
instintivamente, a ligação, nunca até ali compreendida, das
aldeias em que nasceram com a cidade que se ia esfumando à popa do
navio, entre céu e azul. E contemplavam-na, emocionados, vencidos
pelo coração, como se nela se focassem os panoramas nativos, com as
suas figuras e a sua saudade.”
A história de hoje
fala-nos de Tonio, um jovem aldeão siciliano, afável, inteligente e
bem-parecido, atingido pelo defeito congénito de um pé boto. No
velório do avô, Ripponi, o proprietário para quem toda a família
trabalha, decide atribuir-se a generosidade de custear metade da
viagem do jovem para a América, devendo o resto da aldeia
quotizar-se para o resto. Nada foi feito por desinteresse, sentimento
que ao bicho-homem raro assiste, mas os desenvolvimentos, só nos
tomos seguintes conheceremos.
Ellis Island, foi o
histórico centro de acolhimento, fiscalização, internamento e por
vezes devolução dos recém-chegados à América, terra do leite e
do mel no imaginário dos pobres da Europa, e ainda hoje dos
deserdados do mundo. Tonio deixara para trás a aldeia, a família e
um amor inesperado. Ao largo de Manhattan, muda de vogais e de
condição: passa agora a imigrante, e ao desconforto do que lhe é
ignoto. À terceira prancha vemos o convés pejado da gente da
terceira classe (título de um
belo livro de José Rodrigues Miguéis) e os comentários desdenhosos
atirados de cima pelos da primeira. Uma maravilhosa algaraviada do
lumpen europeu, cujo olhar irradia esperançada expectativa, seja
gaiato ou velho quase de pés para a cova. No interior, Tonio fez
amizade com Giuseppe, italiano do norte, desempoeirado e expansivo.
Os viajantes da primeira e segunda classes eram dispensados dos
procedimentos, desembarcavam directamente em Nova Iorque. Neste
confronto do rebanho com os burocratas de fronteira pela oportunidade
de um lugar ao sol, entre a indiferença e a crueldade, com vária
escória humana à mistura, o argumento de Philippe Charlot (autor da
série O Comboio dos Órfãos,
edição Arcádia) é particularmente conseguido no rastreio das
misérias e grandezas humanas. O desenho aguarelado do polaco Miras,
o tratamento das fisionomias, lembrando François Boucq, e a
disposição das vinhetas potenciam o trabalho de Charlot.
Na última vinheta,
olhando para Manhattan, depois de mais uma prova posta ao seu
humanismo, Tonio pergunta(-se): “Em que nos estaremos a tornar,
Giuseppe?” E a resposta não tarda: “Em americanos, Tonio, em
sacanas de americanos.”
Ellis Island –
1. Bienvenu en Amérique!
Texto: Philippe
Charlot
Desenhos: Miras
edição: Grand
Angle, Charnay Les Mâcon, 2020.
«Leitor de BD»