terça-feira, 12 de outubro de 2021

coboiadas



Uma capa minimalista que pouco diz sobre o que vai no seu interior, é a face do primeiro tomo de Gus, de Christophe Blain (Argenteuil, 1970), originalmente publicado em 2007: um cowboy de aspecto grotesco e nariz de Pinóquio em potência máxima, parecendo lançar-se sobre algo (uma sela, por exemplo), com olhos que não são de fiar. Abre-se, e se desconhecêssemos o autor, que é o mesmo de Isaac o Pirata, perceberíamos então que não se trata de histórias para meninos de bibe. Gus, Clem e Gratt formam uma quadrilha de ladrões de bancos e diligências. Amigos leais entre si, não têm pejo em despachar para a terra da verdade qualquer que se lhe atravesse ao caminho. Brigões perigosos, a maior fraqueza está nas “gajas”... Após cada assalto, há um banho reparador numa casa de meninas, que antecede a acção com as ditas. Porém...

Versando sobre diversos tipos de mulheres, o livro é escrito e desenhado por um homem e fala-nos também de homens e da sua obsessão primeira ou principal: como lidar (com) as mulheres quando o propósito é levá-las para a cama. Estes patifórios ficam a perceber que a última palavra é sempre delas. Gus é o mais cómico deste trio: um pinga-amor, cheio de dinamismo para a conquista, ficando invariavelmente a ver navios; Gratt é o mais tímido e gentil, o que lhe vale alguma coisa; Clem, por fim, homem de família, surge ligado às mulheres mais interessantes de todas quantas por aqui desfilam. Vamos a elas: Isabella, uma fixação antiga, é a que espicaça e nunca se entrega, pobre Gus, que terá de orientar o longo nariz para outro azimute. Depois a mulher sem nome, tão desejável, que se deixa admirar enquanto faz tempo numa estação de muda de cavalos, traz-nos à memória a milady do deslumbrante Cesário Verde: “Milady, é perigoso contemplá-la, / Quando passa aromática e normal, / Com seu tipo tão nobre e tão de sala, / Com seus gestos de neve e de metal.” Melanie e Lucy são a leveza da inconsistência que pouco ou nada acrescenta; tê-las ou não é mais ou menos irrelevante, como elas bem sabem e assim se dão bem. Depois, a poetisa chanfrada, com cremes e idade a mais; Gisella, a pintora madura ricamente casada e senhora da própria agenda; ou ainda a mal casada e não lá muito cheirosa Linda McCormick, mulher do juiz, que se apaixona por cada amante, nascida para carpir desilusões. E ainda as baristas e as prostitutas, que fazem o mundo girar. As belas figuras deste cortejo são Ava, a mulher de Clem, esposa leal, que se pressente fogosa debaixo duma capa de austeridade; e Isabella, a amante, a mulher livre, que se dá aos homens de quem gosta sem lhes pedir nada em troca, fotografando-os, não como troféus, antes recordação afectuosa.

Por baixo do desenho caricatural, grotesco e propositadamente infantilizado, há um colorido painel sobre relações, entre o encanto e a frustração. Encantador é o trabalho de Blain, a cor e o movimento de cada vinheta. E o conselho é este: após a primeira leitura, o melhor é mesmo folhear vagarosamente, apreciando cada vinheta e a arte sequencial do autor.


Gus – 1. Nathalie

texto e desenhos: Christophe Blain

Edição: Gradiva, Lisboa, 2021

«Leitor de BD»

Sem comentários:

Enviar um comentário