segunda-feira, 18 de outubro de 2021

heróis improváveis




Na BD sucede, com alguma frequência, uma personagem secundária impôr-se ao autor ou ser adoptada pelo público, disputando com o protagonista o interesse dos leitores: Spirou ou Astérix são bons exemplos: é impossível imaginar este sem Obélix, e primeiro caso, Fantásio subiu mesmo ao cabeçalho, passando a série a apresentar-se como relatando as peripécias de ambos – as aventuras de Spirou e Fantásio. Astérix e Spirou são demasiado correctos e idealizados nas suas qualidades, enquanto Obélix e Fantásio estão cheio de defeitos e isso diverte, até porque vemo-nos ao espelho. O mesmo poderia dizer-se de Tintin e Haddock, Mickey e Donald e outros mais. Uns representam muito do que desejaríamos ser, os outros algo do que realmente somos. Há ainda outros casos curiosos em que personagens vindas do nada tomam conta das séries, relegando os prévios protagonistas por vezes a meros coadjuvantes: Popeye aparece em 1929 em Thimble Theatre, criado uma década antes, tendo Olívia Palito como personagem principal; a figura do livrinho de hoje, Nancy, talvez a criança mais feia dos comics, que destronou e relegou para a insignificância a tia, uma brasa com pinta de pin-up.

Em 1922, Larry Whittington (1903-1942) criou a personagem Fritzi Ritz, uma pura mundana desse período socialmente agitado do pós-Grande Guerra; mas apenas três anos depois, em virtude de disputas de copyright – eram os proprietários dos jornais em que se publicavam estas comic strips quem detinha os direitos de autor, e não os artistas que as criavam –, Whittington foi afastado dando lugar a outro jovem, Ernie Bushmiller (1905-1982). Em 1933, este introduz Nancy na série e pouco depois Sluggo, o amiguinho leal e paciente, inspirando-se Ernie na sua própria infância não muito abonada de filho de imigrantes vivendo no Bronx. Cinco anos mais tarde, em 1938, Nancy passa a protagonista, a tia Fritzi (a tia Glorinha, em português), continua lindíssima, mas remetida ao papel de educadora , nem sempre bem sucedida.

Nancy não é mignonne como a sua contemporânea Luluzinha, nem uma líder como Mônica, ou inteligentemente contestatária tal a Mafalda. Não, Nancy é uma criança caprichosa, comilona e por vezes desagradável e também esperta – talvez a razão do seu sucesso junto do público norte-americano. Entre nós, os miúdos ficaram conhecidos por Tico e Teca, assim chamados pelos brasileiros, nas revistas que aqui chegavam.

O talento de Bushmiller em criar uma situação cómica nas escassas vinhetas de uma tira, fazendo-o com economia de meios, mas grande legibilidade, foi sublinhado pelos estudiosos e pelos colegas de profissão. Autores como Wally Wood e Art Spiegelman expressaram a admiração pelo trabalho deste veterano, e no ensaio How to Read Nancy? (1988), os autores, Paul Karasik e Mark Newgarden, evocam o minimalismo de Mies van der Rohe a propósito da composição das tiras diárias de Nancy, acrescentando que elas são o modelo mais perfeito das características que deve apresentar uma tira de quadradinhos: equilíbrio, simetria, economia....


Tico e Teca – Especial

autor: Ernie Bushmiller

edição: Idéia Editorial, São Paulo, 1976

«Leitor de BD»

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