segunda-feira, 16 de novembro de 2020

uma outra montanha mágica


 

Recém-chegado de uma ilha ignota a uma cidade sem nome em busca de trabalho, Mafaldo Limparrim encontra colocação como penteador de manequins numa discreta loja de miudezas, à Rua dos Parâmetros Assertivos. O dono passava a maior parte do tempo na vilória do Poço Novo, numa encosta de montanha, da qual se dizia os ares serem pouco saudáveis. Quando Mafaldo vai de encontro ao patrão à cata de instruções, começa também uma viagem de eléctrico por um novo mundo que os quadradinhos portugueses até agora ignoravam, ciceroneado pelo lápis e pelas palavras de Paulo J. Mendes (Porto, 1965), autor e fanzinista durante 30 anos afastado da BD, mas não desligado das artes visuais, e cujo gosto retomou quando mão amiga fez chegar umas quantas novelas gráficas, género consagrado principalmente por Will Eisner.

Na apresentação, Mendes dá-nos o grande plano da narrativa: “Um território imaginado de contornos perfeitamente definidos, um punhado de situações surrealistas, e algumas peripécias vagamente baseadas em vivências reais, tudo temperado pelo gosto por paisagens e arquitecturas pitorescas, arte sacra e talha barroca, os eléctricos desde sempre acarinhados e sem esquecer a evocação, transpondo para o plano da fantasia, duma fascinante e estranha capela perdida – sim, existe mesmo – enigmática e quase tumular, com a qual tinha dado de caras há uns anos a percorrer certas serranias do Alto Minho.”

Mafaldo sobe de eléctrico (em vez de descer…) ao Poço Novo, tímido e receoso dos tais maus ares, pois quem de lá vem chega sempre num estado alterado de consciência, o que não é de admirar, já que nessa vila come-se bem (favas com chicória é o prato típico) e bebe-se melhor (o célebre “licor garganta”, do pároco); além disso, em cada esquina um amigo, e na porta em frente a possibilidade de uma cama com companhia. É todo um novo patamar de relacionamento humano que se abre ao protagonista, Hans Castorp virado do avesso sem divagações sobre o Tempo ou colóquios de filosofia política.

O Poço Novo é uma espécie de paraíso terreal de que as autoridades se esquecem; o lugar dá-se bem sem a autoridade. Não obstante, os seus representantes acabam por ser compelidos à vez pelo grupo de pândegos a conhecerem o que vale a pena. “Salsicho” o autarca, os soberanos Gelásio e Purgantina e o próprio pontífice Dligberto, cada qual em seu eléctrico (popular, real ou papal) rumo àquele torrão edénico parado no tempo. Mas o melhor achado é Atrofiel, o anjo-da-guarda estagiário recolhido na igreja de S. Barnabilro, que se empenha com pundonor em assegurar a felicidade de Mafaldo, pese embora a falta de competência.

O penteador é um delírio a ser lido, um microcosmos pessoal, um osso que o autor não deveria largar.


O Penteador

texto e desenhos: Paulo J. Mendes

edição: Escorpião Azul, Lisboa, 2020

«Leitor de BD», jornal i

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