terça-feira, 24 de novembro de 2020

uma rapariga estranha



Série iniciada em 1979 na revista francesa Circus, publicada pela editora Glénat, de Grenoble, logo granjeou a melhor atenção de público e crítica, sendo o autor, François Bourgeon (Paris, 1945) distinguido no ano seguinte com o Prémio “Alfred” (o pinguim de Zig e Puce) para melhor desenhador, no Festival de Angoulême. Os Passageiros do Vento revelam no mesmo autor o melhor que uma BD pode oferecer: um argumento consistente, um estilo rico, cheio de recursos e o modo criativo e dinâmico como a conjugação de texto e desenho se harmonizam numa prancha, processo que está para a BD como o enquadramento e a montagem estão para o cinema.

O tempo é o último quartel do século XVIII, pouco antes da Revolução Francesa; o espaço é o Oceano Atlântico, com algumas analepses relativas ao percurso da protagonista, a partir daqui uma figura icónica, personagem inesquecível da BD global. A Rapariga no Tombadilho é o primeiro de uma série de cinco álbuns publicados até 1984. A capa mostra-nos uma jovem e estranha mulher empoleirada à noite e à chuva no cordame dum barco que se adivinha de grande porte – uma forte imagem de apresentação duma nova BD. A bordo do “Foudroyant”, embarcação de 74 canhões da Marinha Francesa, capitaneado por Benoît de Roselande, um aristocrata pouco competente como marinheiro, duas jovens mulheres vão resguardadas da tripulagem, até serem avistadas fortuitamente por um grumete bretão, o rapaz Hoël. Agnes e Isa, duas aristocratas, uma rica outra pobre, a segunda acompanhando a primeira, não são quem dizem ser, mas estão amarradas a uma falsa identidade, por uma brincadeira que correu mal. A vítima e heroína é Isabeau, a rapariga da capa, insurrecta, aprendeu a usar de toda a manha, violência, argúcia e dissimulação que lhe permita sobreviver num mundo de homens, em que da mulher se espera apenas o exercício das funções de fêmea. Mas Isa não tem nenhuma dessas vocações, pelo contrário, é libérrima, o que dará ensejo ao autor de enveredar por um erotismo à época transgressor, embora elegante.

Um dos grandes méritos de Bourgeon é a forma como encaixa a informação histórica na narrativa, a erudição com que emprega os termos técnicos de navegação, não apenas no nomear de tudo o que compõe um grande veleiro de guerra, como também as manobras navais, incluindo táctica de combate. A informação flui com naturalidade, e é assim que podemos perceber as tensões sociais que anos mais tarde iriam desembocar na violência revolucionária dos sans-culottes, do povo-miúdo, ou o mundo antagónico que opunha tradicionalistas e iluministas, nos diálogos e picardias travados entre o capelão e o médico de bordo.

Bourgeon trabalha numa sequela centrada numa descendente de Isa, que já aqui noticiámos. Os Passageiros dos Vento é uma série cuja presença é imprescindível numa biblioteca essencial de banda-desenhada.


Os Passageiros do Vento – 1. A Rapariga no Tombadilho

texto e desenhos: François Bourgeon

edição: Meribérica / Liber, Lisboa, s.d.

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