Passada a fase do saque, escravização e evangelização forçada dos primeiros séculos pelos conquistadores europeus, a atitude genérica em face dos nativos do continente americano passou a ser a da submissão. De preferência com pazes feitas e tratados assinados, naturalmente obliterados à primeira necessidade ou conveniência, pois a colonização a tal obrigava. A partir do século XIX, o Euromundo triunfante começou a pretender “civilizá-los”, desconhecendo ou desdenhando das culturas autóctones de forma profunda, sempre complexas, umas delicadas, outras nem por isso. Foi apesar de tudo um progresso: deixou de considerar-se o outro como desigual, não sendo mais eticamente tolerável uma prática de tiro ao índio, visto como selvagem irredutível, ou mesmo semi-homem. No entanto, à medida que essas sociedades foram sendo estudadas, ganhava peso, a partir de meados do século passado, uma outra perspectiva, de sinal oposto: os “índios” deveriam ser deixados intocados, à margem do resto da humanidade, descontaminados da dinâmica das sociedades do “homem branco”. Mesmo que bem intencionada, vamos admitir, essa posição, que ainda hoje vence em largos sectores da academia, não apenas pretende parar o vento com as mãos, sendo por isso inútil, como se arroga um outro tipo de superioridade, como se as tribos ali estivessem como sujeitos de observação laboratorial, redundando numa espécie de paternalismo do avesso.
Esta questão maior – que na literatura portuguesa é tratada com equilíbrio por Ferreira de Castro no seu último romance, O Instinto Supremo (1968) – surge-nos com acuidade no livro de hoje, uma narrativa de Tex, intitulada Patagónia. O ranger, que é simultaneamente chefe navajo, com o nome de Águia-da-Noite, é chamado por um amigo argentino, militar que conhecera no México, e que no seu país pertence a uma das facções que se digladiam, também quanto ao tratamento reservado aos povos nativos: o diálogo, trazendo-os à “civilização”, ou as expedições punitivas contra os insubmissos, neste caso uma parte da tribo pehuenche, pertencentes à nação mapuche.
Trata-se de uma obra maior dos fumetti, os quadradinhos italianos, e um encontro entre um senhor argumentista, Mauro Boselli (Milão, 1953) e um dos grandes desenhadores da BD europeia da actualidade, Pasquale Frisenda (Milão, 1970), resultando num enlace perfeito. A narrativa é poderosa, encorpada, sem palha, fugindo aos lugares-comuns, mesmo que aqui e ali possa incorrer em algum anacronismo, surgindo Tex como personagem densa, sempre guiado pela ética, mas mais rugoso (mais verosímil...), Frisenda, extraordinário no preto e branco como no sfumato, fez uma estupenda leitura gráfica do texto de Boselli, valorizando a trama. O início, o assalto a um fortim, e o fim, uma espécie de Termópilas nas pampas, têm um gosto épico que se guarda na memória. No conjunto, um livro para saborear, vagarosamente.
Tex – Patagónia
texto: Mauro Boselli
desenhos: Pasquale Frisenda
editora: Polvo, 2.ª edição, Lisboa, 2018.
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