Frank
Le Gall é autor de uma maravilhosa série de aventuras dentro da
“linha clara”: Théodore Poussin, ou Teodoro Pintainho, como
ficou na tradução do primeiro e único álbum publicado em
Portugal, pela Meribérica, que teremos um dia de ir buscar à velha
estante. Para já a notícia de que a Dupuis se prepara para lançar
“a integral”, com os seis primeiros álbuns divididos por dois
volumes. Edição Dupuis, Marcienelle, 2020.
segunda-feira, 29 de junho de 2020
domingo, 28 de junho de 2020
Dick Tracy
No que respeita aos
comics a primazia deve-se a
Chester Gould (1900-1985) e ao detective policial que criou, Dick
Tracy. Surgido em dois jornais,
em Nova Iorque e Detroit, em 1931, em pleno vigor da “Lei Seca”,
à sombra da qual medrou o crime organizado, com o seu cortejo de
horrores, disposição legal que viria a ser revogada na presidência
de Franklin D. Rossevelt, um dos grandes presidentes da história dos
Estados Unidos.
A
diferença de Dick Tracy relativamente a recriações recentes como o
magnífico Torpedo, de
Enrique Sánchez Abuli e Jordi Bernett, reside na circunstância de
este se tratar de uma recriação, com a justaposição da pátina
que o tempo histórico lhe deu, ao passo que Dick Tracy evoluía
durante o calor dos acontecimentos. Talvez por isso a violência e a
crueza que por vezes é apontada à série se explique por essa
contiguidade com o crime, trazido em manchetes pelo mesmo jornal que
publicava Dick Tracy, em tiras diária e páginas dominicais. Acresce
à verosimilhança da violência o atractivo dos gadgets
a que o detective lançava mão e à prática científica forense
apresentada de forma meticulosa, pois o próprio Chester Gould tirara
vários cursos para documentar-se.
Mas o principal
trunfo de Dick Tracy deve-se, quanto a nós, à mestria narrativa do
autor, com uma influência do cinema, nomeadamente nas elipses e
cortes de planos. Gould possuía uma mestria narrativa que prendia a
atenção do leitor. Neste mesmo livrinho, por exemplo, numa única
tira, com apenas três vinhetas – dando sequência à do dia
anterior e procurando interessar o leitor pela continuação no dia
seguinte – cada quadrinho corresponde a lugares diferentes da
história: o espaço da vítima, o dos criminosos e a esquadra de
polícia (cfr. tira central da página 27).
O
Caso 3-D, a história desta
edição, datada de 1957, é um vulgar episódio de extorsão, muito
bem contado. Cabeça de Lata, a personagem central, magnata do
petróleo, detentor de uma fortuna colossal e vários casamentos,
decide visitar um dos sete irmãos, após 30 anos de ausência. Este
é BO Plenty (Farfalha, na tradução brasileira), um hillbilly
– ou seja, uma dessas figuras
rústicas, que vivem em clã nas zonas montanhosas da América do
Norte, celebrizados também pelos comics e
pelo cinema – e a cuja família, em particular às jovens
sobrinhas, quer presentear com uma modelar casa de banho... Este
Farfalha, ex-criminoso tornado amigo de Tracy, foi um elemento de
contraponto humorístico, para suavizar a violência negra do
argumento. Ao mesmo tempo, Poly, ex-mulher de Cabeça de Lata e
gananciosa, mancomunado com o amante, 3-D Magee, não olham a meios
para extorquirem o possível ao velho tycoon.
No fim, é fatal, o bem triunfa sobre o mal. Rima e tomara fosse
verdade.
Dick Tracy -- O Caso 3-D
argumento e desenhos: Chester Gould
sexta-feira, 26 de junho de 2020
do melhor
Mesmo
sem ainda termos lido senão algumas pranchas. E porquê? À partida,
porque o argumentista é Xavier Dorison, de quem já aqui falámos a
propósito de Undertaker;
depois porque os desenhos de Félix Delepe, um jovem autor de 27 anos
são de tal forma soberbos na antropomorfização animal – ao nível
de Sokal (Canardo)
e Guarnido (Blacksad),
que nos deixam ávidos por próxima leitura. Um castelo é abandonado
pelos senhores, e os animais dele tomam posse. Sílvio o touro
impõe-se e governa pela força. Que aproximações e distâncias a
Animal Farm,
de George Orwell?... O
Castelo dos Animais,
tomo 1, edição Arte de Autor, 2020.
quarta-feira, 24 de junho de 2020
à procura do passado
Romance
gráfico da alemã Antonia Khün, fala-nos de Paul, um rapaz que
perdeu a mãe, e cujo passado familiar está envolto em secretismo,
interditos ou não-ditos. Trata-se de saber, ajudado pela memória
desfocada e intermitente e fragmentos remanescentes do passado, que
família é a sua. La
Clarière, edição
Cambourakis, 2020.
segunda-feira, 22 de junho de 2020
André Diniz outra vez
Também
dele já aqui falámos, a propósito do desafiante Entre
Cegos e Inimigos (2019).
Oportunamente será a vez de abordarmos a segunda edição de Morro
da Favela, sobre o
fotógrafo Maurício Hora, enriquecida com novas pranchas do autor e
mais fotografia. Edição Polvo, 2020.
quarta-feira, 17 de junho de 2020
sobre o mal
Umbra”, palavra latina
para “sombra”, traz consigo todos os transtornos: os segredos
inconfessáveis, a clausura, a morte. Digamos então que Umbra
é uma publicação de banda desenhada sobre a persistência do mal,
em nós e nos outros – e que bem ele se nos apresenta: predação,
conspirações, ganância, parafilias, abusos, de tudo há nestas
cinco-estórias-cinco de BD em português. Uma cabeça de ursinho
Rupert, na capa magnificamente umbrosa, diz tudo.
Estrada
da Coca-Cola, de João Chambel
(texto) e João Sequeira (desenhos), fábula pós-nuclear em que
impera o mutismo e o isolamento. Um casal habitando uma roulote à
beira duma via deserta, em que por vezes circulam presas e
predadores, desespera por encontrar mais gente, mas os sinais de
desumanidade são demasiados para um final feliz. O preto e branco de
João Sequeira serve esta narrativa porosa em que a escuridão
predomina.
Óscar,
sigla de mensagem de radioamador – ‘o chat dos
anos setenta’ – e alcunha da personagem desta história, com
argumento de Pedro Moura e desenhos de Filipe Abranches. Contactado
na banca da arrecadação, onde tentava arrumar tralha antiga, por um
amigo desse tempo, desaparecido havia muito. Óscar percebe que
aquele que agora lhe surge do nada, inesperadamente, como se engolido
e materializado em frequências electromagnéticas. Óscar empreendeu
o registo dessa voz que lhe vinha de outras bandas; porém, o homem
põe e há sempre alguém a dispor...
Herbicida,
também de Pedro Moura e desenhos de Sérgio Sequeira, estica até ao
horror as consequência da manipulação genética no reino vegetal.
O estilo manga de Sequeira enquadra na perfeição o argumento. Das
cinco, é a única narrativa que não se afunda no pessimismo.
Carne,
de José Carlos Joaquim, Pedro Moura e Hugo Maciel, traz-nos um
loquaz psicopata esquartejador de mulheres. Tudo correcto, mas talvez
pelo tema batido, foi a que menos nos agradou. No entanto, uma bela
subversão daquele verso de Camões, “Transforma-se o amador na
cousa amada”...
Finalmente,
Zodíaco, do
brasileiro (Eduardo Filipe) Sama, é uma feliz combinação de
sobrenatural e atmosfera negra, por onde vagueia um jornalista
despromovido para secção do horóscopo. Há o patrão e a mulher
dele, ou cá se fazem, cá se pagam – ou não?
Para
revista falta à Umbra um
pouco mais – e não é só o índice inexistente. Um editorial a
dizer ao que vem, não estaria mal; umas notas sobre os autores,
também não; e se se quer ser revista, há que rever,
um artigo outro não era mal pensado. Falta tudo isso, e é pena.
Esperemos que o n.º 2 possa colmatar estas lacunas, até porque
quando se fizer um balanço das revistas de BD numa qualquer data
redonda deste século, a Umbra
terá de lá estar.
Umbra
#1
Vário
autores
edição:
Umbra Edições, Outubro 2019
Etiquetas:
Eduardo Filipe Sama,
Filipe Abranches,
Hugo Maciel,
João Chambel,
João Sequeira,
José Carlos Joaquim,
Leitor de BD-Jornal i,
Luís de Camões,
Pedro Moura,
Sérgio Sequeira
segunda-feira, 15 de junho de 2020
o primeiro Lucky Luke
No
fim da II Guerra Mundial, o jovem Maurice de Bevère (1923-2001)
trabalhava nuns estúdios de animação em Bruxelas, na companhia
doutros futuros talentos da BD: Franquin (Spirou e Gaston), Peyo
(Schtroumpfs) e Eddy Paape (Luc Orient). A concorrência dos grandes
estúdios norte americanos era avassaladora, e a pequena empresa
fechou. Os jovens viraram-se para a banda desenhada, actividade
supostamente contígua; porém, como viriam a descobrir, a linguagem
é outra e de outra natureza é a arte praticada.
Morris
– nome artístico de Maurice, homofonia adoptada para sempre –
estava longe de imaginar que a personagem que criara, para
o Almanaque Spirou, no fim de 1946, figurando numa breve
narrativa intitulada Arizona 1880, viria a ser um dos
maiores ícones dos quadradinhos mundiais, no que respeita a difusão
e popularidade. Chamava-se Lucky Luke, personagem de que nunca mais
se desligou, sendo um dos raríssimos casos em autores de BD a
trabalhar exclusivamente a mesma figura. Até Hal Foster, que não
imaginamos a fazer outra coisa que não o Príncipe Valente, desenhou
previamente um Tarzan…
Em
1948, Morris partiu para os Estados Unidos, na companhia de Jijé e
Franquin, e por lá ficou seis anos a trabalhar. Em Nova Iorque, três
anos depois, irá dar-se um encontro decisivo com René Goscinny,
decisivo para ambos, pois será em consequência dele que o futuro
criador de Astérix se lançará como argumentista de BD.
O
Lucky Luke inicial tem ainda características de boneco para
animação: traços muito arredondados, quatro dedos em cada mão,
mas também já algumas das características que o distinguirão:
tiro certeiro, um punch de aço, espírito abnegado
e corajoso.
Este
primeiro álbum, publicado em 1949 na sua edição inicial, traz duas histórias: A
Mina de Ouro de Dick Digger (1947) e O Sósia de
Lucky Luke (1951). Na primeira, o mapa de uma mina dum
velho pesquisador é roubado por dois bandidos, com o jovem
cavalheiresco prometendo à mulher de Dick Digger a sua recuperação;
na segunda, Mad Jim é um desperado que aterroriza o
Arizona; acontece que é também um sósia de Luke, vestindo a mesma
indumentária: este é capturado e Mad Jim faz-se passar pelo nosso
herói. Jolly Jumpper, porém, que à época ainda não aprendera a
jogar xadrez, não se deixou enganar. A narrativa termina com o
original a abater a cópia. No tempo de Morris a solo, Lucky Luke
matava; Goscinny acabou com isso.
A
partir de Carris
na Pradaria (1955),
o argumentista vem acrescentar ao carisma inicial uma refinamento no
humor e um carácter menos naïf,
além do cómico de situação, reinventando uns primos Dalton (os
irmãos originais haviam também sido mortos pelo cowboy solitário)
e o cão mais estúpido do Oeste, Rantanplan. Depois foram vieram
livros como O
Juiz O 20º de Cavalaria, A
Caravana, Calamity
Jane, Canyon
Apache, ou Os
Dalton no Psicanalista,
entre outras obras, primas atrás de primas.
Lucky
Luke – La Mine d'Or de Dick Digger
texto
e desenhos: Morris
edição:
Dupuis, Marcinelle, 1969.
edição
portuguesa: Asa, Porto, 2005.
domingo, 14 de junho de 2020
Ama
No
Japão da década de 1960 subsistem numas recônditas ilhas japonesas
um grupo de mulheres, designadas por ama,
cuja prática de mergulho em apneia para apanhar crustáceos é
ancestral. Num Japão tradicional, estas mulheres de modos livres e
naturais – envergam apenas um pano a tapar o sexo – causam a
admiração geral, pelo modo como agem, inclusive perante os
pescadores por quem não se deixam amedrontar. Nagisa, rapariga de
Tóquio, tímida e de educação tradicional, passa uma temporada com
elas, deixando para trás um passado problemático. Texto de Franck
Manguin, profundo conhecedor e apaixonado pelo Japão, cuja cultura
quis estudar após ter lido Kawabata, e desenhos cheios de souplesse
em muitos tons de azul de Cécile Becq. Edição Sarbacane, Paris,
2020.
domingo, 7 de junho de 2020
sem palavras
Realizador,
documentarista, argumentista, o belga Joris Mertens estreia-se na BD
com Béatrice,
história, sem palavras, inspirada num velho álbum de fotografias.
Balconista num qualquer centro comercial, todas as manhãs vê numa
montra uma carteira vermelha que parece aguardá-la. Até que
Béatrice decide levá-la consigo, o que terá como consequência uma
reviravolta na sua vida. Escreve o editor que o mito de Fausto anda
por perto. Edição Rue de Sèvres, Paris, 2020.
sexta-feira, 5 de junho de 2020
um homem escalavrado
A leitura é também um
processo físico, e nada substitui o prazer de ter um livro nas mãos
e folheá-lo, nem sequer as revistas, que são outro tipo de regalo.
Já a web, com todas as vantagens quanto à disseminação de
material, falta-lhe o vinco da matéria impressa, o cheiro a papel e
a tinta, se tivermos sorte. Um álbum em formato clássico de BD
franco-belga, produzido na origem, com a chancela portuguesa da Arte
de Autor, dá-nos aquela boa sensação. E com a pandemia, as opções
têm sido escassas...
Comecemos
pela capa, ampla, imagem aberta e essencial como o cenário de que se
compõe. O Colorado, nos finais da década de 1860, um território
que não ascendera ainda à dignidade estadual e cujo nome tipifica o
lugar-comum do oeste selvagem,
de terras sem lei nem ordem. Os áridos maciços pedregosos
das Rocky Mountains, cujo tom terroso e barrento contrasta com a
chapada de azul celeste, impõe-se à imagem do cowboy e montada
postados à direita, em primeiro plano. Enquanto que, no canto
superior esquerdo, entre o nome dos autores – Hermann e Yves H. –
e o título deste episódio – A Última Vez que Rezei
– o lettering que
compõe o nome-alcunha do protagonista – Duke –
apresenta os caracteres gastos, corrompidos, um borrão com salpicos
de tinta caindo da letra inicial, como se um esguicho de sangue negro
se tratasse, transmitindo a condição do herói, a de um homem
escalavrado, como a paisagem que percorre com o olhar. Hermann a
anunciar a mestria do desenho, os fundos aguarelados, a eficácia dos
enquadramentos.
Neste
quarto álbum, Duke, que vinha descobrindo-se pistoleiro contra a
própria vontade, parece ter-se rendido ao fatum
nefasto que o assombra, vindo dos tempos remotos duma infância que
vamos entrevendo pelas informações que o texto nos vai dando;
através diálogos evocativos ou recurso ao flasback,
revela uma orfandade precoce que não foi acomodada da melhor
maneira. Nas palavras do protagonista: “Abandonados por Deus, era
inevitável que o Diabo se interessasse por nós...” O passado é
algo de que não se pode fugir.
O
modo de desvelamento, que o argumentista, Yves H., vai soltando com
eficácia, ocorre à medida das muitas peripécias de que o álbum
está recheado: perseguição infrene (há um cofre recheado que foi
objecto de um assalto no álbum anterior, de que já aqui se falou),
o rapto de Peg, a prostituta que é o amor adiado de Duke, a sua
captura, um espectro que o persegue espalhando a morte em redor mas
poupando-o sempre. Em suma, uma sucessão de acções violentas, em
que Duke é quase sempre um agente passivo, em resposta defensiva.
Até quando?
Atentemos
nos nomes dos quatro álbuns: A Lama e o sangue,
Aquele que Mata, Sou
uma Sombra e A Última
Vez que Rezei. O título do
quinto tomo, em que Hermann está a trabalhar em bom ritmo, já se
conhece: Serás um Pistoleiro,
e poderá responder àquela pergunta.
Duke
– A Última Vez que Rezei
texto:
Yves H.
desenhos:
Hermann
edição:
Arte de Autor, Estoril, 2020.
terça-feira, 2 de junho de 2020
mais jornalistas
A
BD está cheia de jornalistas que raramente escrevem e normalmente se
metem em alhadas – de Tintin
e Fantásio a
Ric Hochet,
passando por Clark
Kent.
Jacques Gipar
é um desses. No oitavo tomo das suas aventuras, em tempo de Guerra
Fria, Gipar imiscui-se pelos meandros da sociedade russa de Paris,
cidade favorita de refúgio para os russos brancos, após a Revolução
de 1917, mas pejada doutros, bem vermelhos. Texto de Thierry Dubois,
desenhos de Jean-Luc Delvaux, numa BD muito tributária, no bom
sentido, da Escola de Marcinelle. Lécho
de la Taïga,
edição Paquet.
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