Pegue-se numa personagem popular de BD criada há quase 70 anos (1952) destinada a um público infanto-juvenil, hoje a caminho da terceira idade, cpm características inusitadas: de indefinição morfológica e problemática classificação taxonómica, entre o símio e o felino, com pelagem às manchas, como um leopardo, cauda preênsil com mais de oito metros, e além disso marsupial...; a ferocidade aterradora se hostilizado, torna-o o rei da floresta da fictícia Palómbia; mas é dócil por temperamento e senhor dum apetite voraz e omnívoro. Um marsupilami, não é verdade?
André Franquin (1924-1977) introduziu-o no álbum de Spirou e Fantásio, Os Herdeiros, um clássico, e, a partir de então tornou-se omnipresente até o autor abandonar a série. Spirou prosseguiu sem este extraordinário coadjuvante até a Dupuis comprar os direitos da personagem, integrando-a de novo em 2015, em La Colère du Marsupilami, de Yoann e Vehlmann.
No livro desta semana, La Bête / O Animal, trata-se dum outro marsupilami. No porto de Antuérpia, em finais de Novembro de 1955, um barco atracado carrega no bojo um cenário de pesadelo: animais exóticos traficados da América do Sul não resistiram na maioria às condições do transporte decorrentes de uma avaria que obrigou o navio a parar duas semanas ao largo do Brasil. Entre os sobreviventes, uma estranha criatura que não se deixa ver, confinado a um canto escuro. Como matou a fome e a sede? Não sabemos. E o capitão, o armador e o secretário que desceram ao porão também não saíram para contar. Evade-se o animal que erra até aos arredores de Bruxelas. Aí, desfalecido, será encontrado por Franz, ou François para os demais, um rapaz de dez anos que tem uma especial habilidade para lidar com todos os bichos, que recolhe quando os encontra maltratados. Talvez por François, filho de mãe solteira e fruto da união desta com um soldado germânico durante a ocupação, ser alvo de bullying, como agora se diz, por parte dos colegas, tal como a mãe é olhada de lado no mercado onde ganha a vida a vender bivalves. Sabemos como foi a purga das mulheres que dormiram com o inimigo, imagens que ninguém esquece. Há porém o Professor Bonifácio, bonacheirão com os traços de Franquin (uma homenagem), heterodoxo na pedagogia, também ele vítima da guerra, por outra razão: a jovem noiva cansou-se de esperar quando os soldados belgas derrotados partiram em cativeiro. A BD mudou muito desde há 70 anos...
A forma como Zidrou (Bruxelas, 1962 – temos falado nele) pegou neste ícone é apanágio só dos grandes argumentistas; Já Frank Pé (Ixelles, 1956) é um artista com um lápis abençoado, fazendo o que quer dos seus riscos. Notável cada vinheta, num traço semi-realista, com cor directa suavíssima.
La Bête é um livro excepcional que bem merece uma edição portuguesa, assim as grande editoras não andem a dormir ou as pequenas tenham algum oxigénio durante o estrangulamento viral que nos assola.
La Bête
texto: Zidrou
desenhos: Frank Pé
edição: Dupuis, Charleroi, 2020
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