sexta-feira, 19 de março de 2021

erros de percepção

 




Quando, no reinado de Luís Filipe (1830-1848), a França se expandiu para o Norte de África, para contrabalançar a hegemonia inglesa, aproveitando para empreender uma acção civilizadora – um termo sempre bonito para ocupar territórios de povos que não contavam para nada –, estava a comprar um senhor problema, ainda em curso nos nossos dias e a agravar-se. Por ocasião dos atentados de Paris, o saudoso Arnaldo Matos aduziu, forçando a nota, que se tratou dum “acto legítimo de guerra contra o imperialismo francês”. Legítimo não foi certamente, mas não é de admirar que os muitos crimes cometidos pelo Ocidente, maxime a Guerra do Iraque, não suscitassem, à escala possível, a resposta em moeda semelhante, ainda para mais num ambiente de ressentimentos vários – como apontou Amin Maalouf –, pelo atraso objectivo em face a esse Ocidente que séculos antes ajoelhara pela força das armas e fora impregnado, com requinte, pela civilização então dominante no Mediterrâneo. E no entanto, à hora que escrevemos, milhões de pessoas de todos os credos e sem credo algum apenas querem viver em paz, sem que um veneno ideológico qualquer, que não dominam nem lhes interessa, faça de si carne para qualquer canhão.

Vem esta melancolia a propósito da BD de hoje, um thriller passado em Marselha, urbe desde a Antiguidade e também coio de máfias, pequenos e grandes traficantes, proselitismo islamita junto das hordas de desocupados, jovens entregues a si mesmos até caírem sob a alçada dum capo ou dum imã, com promessas de vingança e paraíso. Todo o clima deste policial negro aponta para aí, com a nota política dada subtilmente por Lewis Trondheim (Fontainebleau, 1964), no meio de tiroteio, pancadaria e coacções várias. Neste particular, a vinheta central do livro situa-se algures na prancha 27: Karmela Krimm, a protagonista, dizendo ao primo: “Se queres vencer na vida, tens de aprender a ser paciente.”, obtendo como resposta: “Se quiser vencer na vida, melhor seria não me chamar Farid.”

Karmela, meio magrebina, é uma ex-agente de polícia, expulsa após uma operação correr mal e assumir a responsabilidade por inteiro para salvaguardar a colega de equipa, mãe de família. Só sabendo ser polícia, recorre a um emprego nas vizinhanças, o de detective privado, experimentando a pouco edificante tarefa de investigar infidelidades conjugais. Até que a viúva de um presidente de um clube da cidade, entretanto assassinado, a contrata. Ciente de estar a pedir a uma mulher que mergulhe onde o crime violento é mais fundo, cede-lhe o guarda-costas, Tadj, homenzarrão com ar de assassino, mas no fundo um bom gigante, bom muçulmano das Comores, pai e marido atento. A desconfiança inicial dilui-se rapidamente, e aí temos uma nova dupla pronta a funcionar num habitat ameaçado, em que o que parece muitas vezes não é. O traço de Franck Biancarelli (Marselha, 1967) é áspero no que respeita à figura humana, mas funcional no cenário citadino. A densidade das personagens e a boa sequência narrativa são um claro triunfo desta série, com mais dois álbuns anunciados.


Karmela Krimm – Ramdam Blues

texto: Lewis Trondhein

desenhos: Franck Biancarelli

edição: Lombard, Bruxelas, 2020

«Leitor de BD»

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