domingo, 6 de dezembro de 2020

da idade de ouro


Este leitor lembra-se dum certo Tio Carlos que aparecia nas páginas do Diário de Lisboa, há mais de meio século. Perdeu-lhe o rasto, desconhece o nome original, a autoria, mas esse imaginário duma curta história sem palavras, quando leitor ainda estava para ser, não mais o abandonou. As tiras: quatro vinhetas e um sorriso esboçado no fim…

Henry, o miúdo careca, desengonçado e que não fala – como não falavam os pantomimeiros do cinema mudo, nem o Reizinho, de Otto Soglow, influências directas – é uma dessas personagens icónicas da idade de ouro dos funnies, cujo surgimento foi um pouco inusitado. Carl T. Anderson (1865-1948), filho de imigrantes noruegueses radicados no Wisconsin, era um jovem marceneiro, inventivo e com sentido artístico, que após frequentar um curso nocturno em Filadélfia ruma a Nova Iorque na transição do século para trabalhar nos jornais, repartindo-se entre o cartoon e os comics: The Filipino and the Chick é uma abordagem mordaz à questão filipina, no âmbito da Guerra Hispano-Americana, e Raffles and Bunny, é inspirado nas narrativas do ladrão-cavalheiro, criadas por E. W. Hornung. Sem grande sucesso, porém, era o cartoon que então lhe assegurava o sustento. Após o crash bolsista de 1929, Anderson, dobrados os sessenta anos, regressa à cidade natal e ao ofício da marcenaria, leccionando desenho em aulas nocturnas. Numa delas, o autor falhado esboçou esta cabeça de ovo, nariz empinado e boca praticamente invisível. Os alunos adoraram o boneco e Anderson deu-lhe o nome de um deles: Henry.

Animado pela reacção dos estudantes, envia alguns trabalhos ao Saturday Evening Post, jornal que acolheu grandes artistas gráficos, como Norman Rockwell. Era pois um homem entrado na velhice quando o êxito lhe bateu à porta, de forma retumbante e com alcance mundial. Impressionado com o ataque desferido pela máquina de propaganda nazi contra o boneco, “Henry o velhaco”, assim lhe chamaram os sequazes do Goebbels, William Randolph Hearst, magnata da imprensa, contrata-o para o King Features Syndicate. As tiras diárias e a página de Domingo, o trabalho e a saúde precária obrigaram-no a empregar assistentes: Don Trachte (1915-2005), trabalhará 61 anos em Henry, assinando a prancha dominical... Nas tiras, John Liney (1912-1982). Outros se seguiram, até ao final da série em 1995, mas jornais em todo o mundo continuam a publicá-las.

O livrinho de hoje é todo de John Liney, excepto a tira da contracapa, de Anderson. Henry – que mantém o nome em Portugal, enquanto que no Brasil será Pinduca, e depois Carequinha – ,tirando o não falar e a calvície seria uma criança como as outras (um anjo, se comparado com os Katzenjamer...). Guloso, por vezes teimoso, esperto e ingénuo, conforme as ocasiões, às voltas com Henriqueta, menos infantil, mais sabichona. Humor estribado em qualidades de observação notórias dos autores, de atenção ao quotidiano – o lugar de Henry, que é também o nosso.


Henry

autores: John Liney e Carl T. Anderson

edição: Portugal Press, Lisboa, 1971

«Leitor de BD», jornal i

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