É
um dos grandes episódios da história da Europa, com repercussões
mundiais. A 27 de Maio de 1588 uma formidável frota de cerca de 200
velas e 20 mil homens largou do estuário do Tejo, rumo à
Grã-Bretanha. Missão: destronar Isabel I. A bordo da nau-capitânea,
o galeão português São Martinho, estava o duque de Medina-Sidónia,
nomeado por Felipe II, havia sete anos Felipe I de Portugal.
Joaquim Veríssimo
Serrão, um dos mais informados historiadores deste período, dá-nos
várias razões para a expedição contra a monarca Tudor, todas de
peso, a nosso ver: deposição de uma soberana herege, repondo o
catolicismo – Felipe fora rei consorte de Inglaterra, viúvo da
Bloody Mary (Maria Tudor,
assim alcunhada pelo furor com que perseguiu o anglicanismo),
vingando também a católica Maria Stuart, rainha da Escócia,
mandada executar por Isabel; punir os ataques corsários de Francis
Drake e outros contra as possessões e barcos espanhóis;
aproveitando ainda para neutralizar a acção dos rebeldes
portugueses em torno de D. António, Prior do Crato, aclamado rei em
Santarém (1580). Além disso, a Felipe que era filho de Carlos V –
em cujo império o solo nunca se punha – e de Isabel de Portugal,
oferecia-se-lhe o ensejo de engrandecer mais a Casa de Habsburgo, com
a bem sucedida inclusão do reino português e respectivo império,
que ele próprio afirmara ter herdado, pago e conquistado... E, já
agora convém acrescentar, também respeitado, pois cumpriu todas as
promessas feitas nas Cortes de Tomar, em 1581. Aliás, ele gostava de
Portugal, por várias razões, a menor das quais não será o facto
de a mãe ser portuguesa, filha de D. Manuel I; e por cá se demorou
durante dois anos após a coroação. O brasão da União Ibérica,
em que o maior destaque é dado ao escudo, com os sete castelos em
ouro e as cinco quinas com as chagas de Cristo, tal como a bandeira
portuguesa ainda hoje apresenta, é eloquente.
Mas
havia outro motivo que levava Felipe II a querer remover Isabel I: o
apoio aos holandeses, em rebelião havia duas décadas – a
República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos –,
protestantes calvinistas, guerreiros, comerciantes e piratas quando
era preciso, apoiados pela Inglaterra. Nacionalismo, religião,
riqueza que levaram a 80 anos de guerra contra os espanhóis. E já
entrámos na BD de hoje: Cori o Grumete,
um extraordinário fresco aos
quadradinhos que decorre entre os séculos XVI e XVII, criado em 1951
por Bob de Moor (1925-1993), um mestre da “linha clara” e o
principal assistente de Hergé na segunda fase do período do criador
de Tintin. Cori é um muito jovem grumete holandês, espião ao
serviço de Isabel I, em missão em Espanha, potência ocupante do
seu país. Como se desempenhou neste complicado xadrez geo-político,
é o que veremos na próxima semana, pretexto para continuar com os
clássicos.
Aos
25 anos, Bob de Moor (1925-1992) entra directamente nos
Studios Hergé como assistente principal de Hergé, ocupando o lugar
de Jacobs, cujos Blake e Mortimer
não se compadeciam com meios tempos. O jovem
parece assimilar à vez o estilo dos mestres belgas que lhe
precederam: João e Estêvão (entre
nós, no Cavaleiro Andante)
evoca Willy Wandersteen (criador de Bob e Bobette),
Barelli (na revista
Tintin). Hergé; e em
Cori o Grumete vemos
muito de Jacobs. Balthasar,
uma colecção magnífica de gags protagonizada por um velho
bonacheirão, criação fresquíssima chumbada pelos leitores da
revista Tintin belga,
é um caso à parte: aí Bob de Moor segue apenas o seu espírito
jovial – talvez demasiado, em paragens cinzentas.
Cori
o Grumete, criado em 1951, é um
adolescente (como o eram Tintin e
Alix, de Jacques
Martin, outro homem da casa). Em A Invencível Armada,
Cori e Harn de Vroom são espiões holandeses em Cádis, a soldo de
Isabel I, disfarçados de fabricantes de velas. Os Países Baixos
eram, como vimos, uma possessão espanhola em rebelião, contando com
a Inglaterra como principal aliada. Cori apodera-se dos planos
secretos para a invasão espanhola do reino inglês; mas serão de
seguida desmascarados. A monte, na companhia de marginais, uma
emboscada surpreende-os, separando os amigos. Cori, chega a França,
devastada pelas Guerras de Religião (1562-1598), salva François,
criança huguenote das garras dos “papistas”, levando-a consigo
para Inglaterra. Quanto a Harn, ferido e socorrido por um nobre
espanhol, que será o número dois da Armada, seguirá para Lisboa.
Como Hergé, Jacobs
e Martin, maníacos da documentação, Bob de Moor, estudou a fundo
este complexo episódio naval, militar e político: falta de vento no
início, apodrecimento de víveres, tempestade inesperada na
embocadura da Corunha, cheia de escolhos. À aproximação a
Inglaterra o moral já não era o mesmo. Dá-nos também as
características dos dois comandantes: Medina-Sidónia, um indeciso
cumprindo burocraticamente todas as indicações dos despachos de
Felipe II em vez de aproveitar as oportunidades que pudessem surgir –
até porque a “Felicíssima Armada” era superior em poder de
fogo; do outro lado, o sanguíneo Drake, “El Draque”,
chamavam-lhe os espanhóis, o oposto em génio táctico. O desastre é
rematado quando uma embarcação carregada de explosivos deflagra de
encontro aos barcos espanhóis.
Este
tomo 2, intitulado O Dragão dos Mares (alusão
a Francis Drake) é esplendoroso. De Moor compraz-se no desenho de
todo o tipo de embarcações; o olhar demora-se em cada vinheta, cada
prancha aproveitada ao pormenor, não raro com frisos de margem a
margem, ou splashes de
página inteira quando não se espera. Um estilo muito próprio de
uma época, em “linha clara”, Escola de Bruxelas.
Cori o Grumete
– A Armada Invencível -- I. Os Espiões de Rainha II. O Dragão dos Mares
texto e desenhos:
Bob de Moor
edição:
Meribérica, Lisboa, s.d.
«Leitor de BD»,
jornal I