quinta-feira, 31 de março de 2022

paródia de paródia



Pela quarta vez, um álbum de Lucky Luke. Não por falta de imaginação – espera-se – e muito menos ausência de material sobre que escrever, embora nem todo acessível. Depois de La Mine d'Or de Dick Digger (1949), título inicial em livro de um herói criado três anos antes, publicado entre nós pela Asa; Um Cowboy no Negócio do Algoidão (também na Asa), um muito conseguido trabalho de Achdé e Jul, continuando o percurso de Morris, mas enriquecendo-o, leu-se também por aqui O Homem que Matou Lucky Luke, editado por A Seita, obra-prima de Matthieu Bonhomme, uma releitura da personagem, indo aos seus fundamentos, recreação, como temos dito equiparável à que Émile Bravo faz com Spirou em Joutnal d'un Ingénu e L'Espoir Malgré Tout (quatro tomos na Dupuis, a casa editora que o viu nascer). Tratando-se de uma homenagem, Bonhomme não se limita a seguir os passos de Morris, o que sucede com Achdé, também, crê-se, por disposição contratual.

Hoje trata-se de um outro tipo de homenagem, uma paródia, semelhante às esplêndidas “Aventuras de Philip e Francis” Nicolas Barral e Pierre Veys (edições portuguesas na Gradiva e Arte de Autor), um gozo às excelsas figuras de Blake e Mortimer. Entre Lucky Luke Muda de Sela, de Mawil, e o já anunciado Choco-Boys, de Ralph König, A Seita publicou recentemente Jolly Jumper Já não Responde, de Bouzard (Paris, 1968), autor com larga colaboração em periódicos como Fluide Glacial, Spirou, Libértion ou Le Canard Echainé.

Este paralelo que fizemos com “As Aventuras de Philp e Francis” levanta uma questão: enquanto que Blake e Mortimer é uma série de perfil realista, Lucky Luke é já de si uma paródia ao imaginário do Oeste americano; e a dúvida é esta: pode a paródia de uma paródia funcionar? Sim, pode, não apenas pelo mérito de Bouzard, como o de Morris, cujo universo verosímil, potenciado posteriormente num sentido de maior comicidade por Goscinny, torna-o um dos melhores westerns dos quadradinhos, mesmo na sua vertente humorística. Todas as grandes figuras e toda a paisagem, ou seja a mundividência desse imaginário que se universalizou em grande parte graças ao cinema e o melting pot, têm lugar em Lucky Luke, o que explica também tanto o êxito como a longevidade da série, assim como as metamorfoses por que tem passado.

Em Jolly Jumper Já não Responde, Bouzard oferece-nos um desastrado Luke, a braços com o que parece ser uma depressão do bravo e inteligente cavalo, que não só já não se sente picado para uma partida de xadrez nem responde às deixas dos dono, algo que costumava fazer com uma verve aguda, atravessando apático a narrativa inteira. Pelo meio, múltiplas referências a aventuras passadas, a presença sempre marcante dos Dalton, desta vez com aparição da Mamã Dalton e de um dos vilões mais inesquecíveis destas histórias, Phil Depher, cujo fácies Morris foi buscar a Jack Palance, brincadeira que repetiria em O Caçador de Prémios. Obrigatório para luckylukófilos.


Jolly Jumper Já não Responde

texto e desenhos: Bouzard

edição: A Seita, Prior Velho, 2021

«Leitor de BD»

segunda-feira, 28 de março de 2022

de A a Z: V, de Valérian (Jean-Claude Mézières e Pierre Christin, 1967)


Agente espácio-temporal do século XXVIII, Valérian e a esplêndida Laureline, colega e companheira em pé de igualdade, paladinos da liberdade contra a tirania por esse Cosmos além. Antes de George Lucas já os bares intergalácticos por aqui andavam.

«Leitor de BD»

sexta-feira, 25 de março de 2022

mãos de ferro



André Diniz é um brasileiríssimo autor de BD, com tudo o que isso tem de bom – quadrinhos no Brasil é mesmo outra história... –, a residir em Portugal já há alguns anos. Dono de um traço único, uma visita à Lambiek (www.lambiek.net – esplêndido dicionário enciclopédico de BD online) –, lembra o óbvio ululante, mas que ainda não nos ocorrera: a influência da xilogravura no seu trabalho, técnica muito utilizada na ilustração da literatura de cordel no nordeste brasileiro, que o talento do autor naturalmente pessoaliza e enriquece. Para o público leitor europeu, pouco ou nada familiarizado com essa manifestação cultural tão específica, levada de para , de Portugal para o Brasil, onde foi sendo reelaborada, adquirindo um perfil próprio, esta característica de André Diniz, simultaneamente tão brasileira e tão pessoal, traz um frescor inusitado. A isto, que já seria muito, acresce um evidente estro narrativo transbordante, um comprazimento em contar história e expor situações.

É o que acontece com o livro de hoje, a edição portuguesa de A Revolta da Vacina, que, podendo ser lida como uma piscadela de olhos aos dias que correm – que também é –, é também muito mais que isso. Em 1904, o Rio de Janeiro sofria os efeitos de uma epidemia de varíola, com medidas tomadas pelo poder de compulsão vacinal, sob pena de multas e penalizações várias, originando motins populares na então capital federal, com a qual o governo lidou com mão de ferro – nada que ver, por enquanto, com o arbítrio deixado à liberdade dos cidadãos a que assistimos por quase toda a parte com a Covid-19; uma liberdade, de resto, muitíssimo questionável em certos casos, sempre que interfere com a liberdade dos outros, tema que para aqui não é chamado, também por falta de espaço.

A Revolta da Vacina ultrapassa, porém, as peripécias em torno da questão sanitária, servindo como pano de fundo para a narrativa principal: o percurso de Zelito, jovem adulto de Fortaleza que se desloca para o Rio, sonhando com um trabalho como desenhador de imprensa, contra a vontade do pai, um comerciante rígido que não crê que tal profissão tenha futuro; ainda para mais, o irmão, preferido pelo progenitor, filho modelo de curso superior tirado e já noivo, com um plano de vida promissor, acabara de morrer. Zelito, que passa a arcar com a expectativas de filho único relativamente a uns pais pouco confiantes, sabe o que quer, mas é também uma pessoa atenciosa, lamentando essa divergência que pode hipotecar as suas aspirações e a vida futura. Acertará com pai um período de seis meses no Rio, para provar o que vale, voltando ao negócio familiar em caso de falhanço. E é assim que vamos assistir à difícil adaptação do protagonista em a busca de trabalho e ao nascer de uma relação que parecia promissora, numa cidade em tumulto epidémico, mas também perturbada por um amplo plano de renovação urbanística na faixa costeira, que atrapalha a vida de todas. E neste contexto se dará a metamorfose do homem em fera.


A Revolta da Vacina

texto e desenhos: André Diniz

edição: Polvo, Lisboa, 2021

«Leitor de BD»

terça-feira, 22 de março de 2022

de A a Z: U, de Urtigão / Hard Haid Moe (Dick Kinney e Al Hubbard, 1964).



De longa barba, espingarda à mão na companhia do cão “Cão”, Urtigão é um parolo das montanhas (Apalaches e Ozark), um hillbilly, como o nome indica, espécie de saloio violento e bronco que fez as delícias dos leitores dos “Patinhas”, quando interagia com os citadinos de Patópolis. Uma das raras personagens dos quadradinhos Disney que é verdadeiramente humana, e não um animal antropomorfizado. Tornou-se muito popular no Brasil e em Itália, trabalhado por autores locais.

«Leitor de BD»

domingo, 13 de março de 2022

a vida brusca



Tomás é um escritor em crise, bloqueado, tal como a sua relação com Elsa, pintora e trepadeira social – conhecer as pessoas certas, frequentar os lugares certos, mote e modo de vida –; Marvel é o parceiro de Tomás para este trabalho que não desata. Argumentista de BD, esforça-se por explicar (ainda em 2000, data da primeira edição deste livro...) que escrever uma BD para adultos não implica fazer pornografia. Como na literatura, a BD explora todos os universos, uma vezes melhor, outras, pior – como em tudo, incluindo a literatura...

Pedro Brito (Barreiro, 1975) também desenhador, assina o argumento, estando o desenho a cargo de João Fazenda (Lisboa, 1979), dois autores então muito jovens e que contribuíram, cada um a seu modo, para que os quadradinhos nacionais dessem um salto assinalável nas últimas duas décadas.

Tu És a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos, a obra de hoje, é uma história desenhada que se desenvolve entre a crise criativa e a crise conjugal de Tomás, temas recorrentes, grandes temas, tendo obtido um assinalável eco há vinte anos, com o Prémio Amadora BD para o melhor álbum português, no acanhado meio bedéfilo nacional, notoriedade a a que não é alheio o já então singular talento de João Fazenda, como o tempo se encarregou de comprovar, não apenas como autor de BD, mas também como ilustrador e grafista.

Muito mais do que uma obra auto-referencial, Tu És a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos deixa testemunho de um tempo, que continua a ser o nosso, de precariedades várias: a relacional, em que tudo é provisório, breve e egoísta, a começar pelo relacionamento amoroso, e a precariedade da BD em particular, mas também o logro duma nebulosa que dá pelo nome de arte contemporânea, em que o rei tantas vezes vai nu, a irritante afectação que se lhe associa, para não falar, permita-se a bucha, da mercadoria em que se tornou, aparente garante de investimento seguro para a vampiragem da finança. O descrédito é grande e a irrelevância também. Todas as lagostas de Berardo não valem a moldura que encaixilha o Bruegel de Salgado, em boa hora transitado para o Museu de Évora.

Enfim, uma oportuna reedição, enriquecida com entrevista aos autores por André Oliveira, posfácio de Pedro Moura, esboços e composição de pranchas; um argumento que não envelheceu, realista com um toque de maravilhoso – a mulher dos sonhos dele, Tomás, e o estranho papel de uma planta tão feia quanto benfazeja. É feia? Sim, mas como disse num verso o divino Carlos Drummond de Andrade, a propósito duma flor pouco galharda: “Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.” Últimas palavras para o trabalho de Fazenda: cores (apenas duas) fulgurantes, um desenho irresistivelmente dinâmico e pessoal, um traço brusco, como o podem ser a vida, as relações, os sentimentos, os desafios,


Tu És a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos

texto: Pedro Brito

desenhos: João Fazenda

2.ª edição, Comic Heart e A Seita, Prior Velho, 2021

«Leitor de BD»

quinta-feira, 10 de março de 2022

de A a Z - T, de Tintin (Hergé, 1929)


A caminho do centenário – e com exposição do autor na Gulbenkian –, o repórter que não escreve, trotamundos na companhia do inseparável fox-terrier Milu; um jovem íntegro, a própria face da pureza que não se exime a aplicar um uppercut bem puxado num qualquer patife. De Tintin no País dos Sovietes até Tintin no Tibete ou As Jóias da Castafiore, que extraordinário percurso.

«Leitor de BD»

sexta-feira, 4 de março de 2022

um pícaro épico



Não tenhamos medo das palavras: O Burlão nas Índias, de Ayrolles e Guarnido, é obra-prima da narrativa sequencial por imagens, vulgo banda desenhada (ou quadradinhos). O ponto de partida é uma novela de Francisco de Quevedo, La Vida del Buscón (1626), escrita no Século de Ouro (entre os reinados de Carlos V e Felipe IV), em que a Espanha é a maior potência universal. É o tempo de Cervantes e do Dom Quixote, que representa o estertor do ideal medieval cavaleiresco, quando o comércio burguês conhece um definitivo impulso (muito bem retratado no livro), e o mundo é uma vasta Barataria sem lugar para cavaleiros-andantes. Reflexo disso mesmo é o surgimento da novela picaresca, com o Lazarilho de Tormes (1554), de autor anónimo, inaugurando um género propriamente castelhano – embora com algumas extensões fora de portas, como entre nós o do grande Aquilino Ribeiro com o seu Malhadinhas (1922) , em que o protagonista é um descarado e triunfador vigarista. Por isso, um pensador notável como Gregorio Marañón podia confessar no fim da vida, num prefácio ao Lazarilho, que embora tocada pelo génio, execrava a novela picaresca pelo que continha de glorificação dos maiores patifes: “«É uma das misérias da arte”, escreveu a propósito. Mas o picaresco ganharia o favor do público e do Tempo, e não é difícil saber porquê: num mundo socialmente estratificado, em que a uns poucos, a nobreza e os príncipes da Igreja, estava reservada a opulência dada pelo comércio e pela rapina nas Índias (as Américas), uma imensa mole humana esgatanhava-se das alfurjas de onde provinham, simplesmente para não morrer de fome – outro aspecto muito bem focado aqui.

O Burlão nas Índias tem um argumento original brilhantíssimo do occitano Alain Ayrolles (Saint-Ceré, 1968) e desenhos de grande mestria do espanhol Juanjo Guarnido (Granada, 1967) – ou não estivéssemos a falar do co-autor da série Blacksad, vindo do campo da animação, dos Estúdios Disney, tendo trabalhado em filmes como “O Corcunda de Notre Dame”, “Hércules” e “Tarzan”. A obra de Quevedo conta a história de Pablos, um jovem natural de Segóvia, filho de um barbeiro e ladrão e de uma curandeira ou bruxa, que se faz escudeiro de um nobre, com vários incidentes de percurso, levando-o a embarcar para as Índias Ocidentais, para refazer a vida. O dramaturgo espanhol anunciou uma sequela que nunca chegou a escrever; fizeram-no Ayrolles e Guarnido, situando a acção em Cuzco, no Peru, depois da conquista de Pizarro, derrotando o Império Inca. O Peru do ouro e da prata e do mirífico Eldorado, que oportunidades para um vigarista! Pablos vai comportar-se como esperamos, mas nem uma linha mais escreveremos a propósito. Apenas que se trata de uma obra superior no que respeita à ideia, aos recursos narrativos, à composição, ao desenho e á cor. O preço não é convidativo, mas as suas 219 páginas valem cada cêntimo.


O Burlão nas Índias

texto: Ayroles

desenhos: Guarnido

edição: Ala dos Livros, Benavente, 2021

«Leitor de BD»