sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

o outro que era ele


Um homem acorda dum pesadelo com uma série de duendes ao lado, que lhe dizem ser um dos sete anões, e de repente, em miraculosa aparição, surge uma generosíssima mulata, longe de ser alva como a neve. (Os anões já estavam fora, mas não era o seu dia.) Recebe, confuso, um convite para uma apresentação dos Badsummerboys Band, no “Heaven – O Céu Bar” – nomes que só na cabeça dos autores – Geral (Mário Cavaco, Lisboa, 1973) e Derradé (Dário Duarte, Lisboa, 1971), sócios nas Produções de Marda – poderia vir ao prelo. E é no “Heaven” que, com ajuda dum uísque com duas pedras, se faz luz, e o filme da vida passa diante dos olhos do nosso homenzinho, que é nem mais nem menos que o próprio Pai Natal, entretanto retirado e barbeado.
Este exaustivo estudo de Geral & Derradé comprova que o Pai Natal é incompatível com o mundo de hoje: da complexidade da logística da distribuição aos direitos das renas, dos duendes reivindicativos, aos putos exigentes, e ao franchise amador, tantos os desafios a enfrentar… Felizmente, dois representantes duma multinacional propuseram-lhe um contrato milionário para exploração dos direitos de imagem, e promessas de descanso merecido, com dinheiro, miúdas e coca. Chegámos assim à balbúrdia presente, de tal forma que nem Dickens… Acordado de um pesadelo para outro, a história termina com o Pai Natal vestido de Pai Natal a distribuir presentes na boite do Céu, na festa do “Filho do Patrão”.
Pai Natal: Um Estudo Morfológico
texto: Geral
argumento: Derradé
edição: Polvo, Lisboa, 2001

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

os persas

Autobiografia de Marjane Satrapi (Rasht, Irão, 1969). até ao início da idade adulta, no seio duma família desafogada do Irão contemporâneo; trecho de vida que assistirá à revolução islâmica, à carnificina da Guerra Irão-Iraque e à normalização da repressão. História pessoal, história duma família, história dum país, Persépolis (quatro tomos, 2000-2003) é um bom exemplo de como a novela gráfica elevou a BD a outro patamar, tema a desenvolver noutra ocasião.
Um livro especial, que traz ao proscénio uma criança de dez anos Marjane Ebihamis, que se tornará 'Satrapi' (nome nada casual), figura real que se transporta para o mundo da BD, enquanto personagem, espécie de mistura feliz da Mafalda de Quino com a Esther de Riad Sattouf. Família especial, moderna e cultivada, classe alta, pais comunistas, ele descendente do xá Nasser Aldim, da dinastia Kadjar, que governou o país entre 1794 e 1925; aristocratas e marxistas num estado cujo tirano foi substituído pela não menos brutal teocracia dos aiatolas. Um país especial, o Irão (os gregos antigos chamaram-lhe Pérsia), berço duma grande civilização, encerrando todas as contradições em que se confrontam tradição e modernidade. Aspirações, refúgio no Ocidente, depressão, até à tomada de consciência de si, numa sociedade esquisofrénica.
Uma observação a propósito do desenho minimalista de Satrapi: reparem nos olhos das personagens e comparem-nos com os dos arqueiros do friso do palácio de Dario III (em exposição no Louvre), cuja capital era... Persépolis.
Persépolis
texto e desenhos: Marjane Satrapi
edição: Bertrand, 2015

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

espectros

Se a infância é um país, como escreveu Antoine de Saint-Exupéry em Piloto de Guerra (1942) – fragmento de uma frase maravilhosa que já aqui citámos a propósito da manga de Takashi Murakami, O Cão que Guarda as Estrelas –, há puerícias que melhor fora delas ser apátrida, pelos traumas, e o sofrimento que se transporta pelo resto da vida. O relato desenhado por Bernardo Majer (Lisboa, 1990), que André Oliveira nos oferece, um dos mais profícuos autores da BD nacional, é contudo um pouco menos pessimista. Entre o céu e o inferno há o purgatório, e será por aí Toutinegra transcorre.
«Qualquer vida tem uma história. Começa a ser conhecida desde o dia em que nascemos / e arrasta-se muito para além da nossa morte.» (p. 72). Esta é uma narrativa de desconformidade. A acção passa-se na aldeia de Moinho, um desses muitos lugares do país à beira da extinção, com meia dúzia de habitantes quase sem crianças e no limiar da fantasmagoria. No centro da narrativa está Pedro, rapazinho de nove anos a quem a vida virou as costas, um desadaptado sem que o saiba porquê, um incompreendido, que mais se compraz na contemplação da Natureza que na companhia das pessoas; entre a escola e a igreja, sem pai, a mãe devota e desequilibrada. Um estranho na sua pele, tem em Laidinha a única amiga e também única colega (a outra criança da aldeia), com pais relativamente idosos, “milagre, nascido à margem do tempo”.
E há também um velho moinho que esconde uma criatura fantástica e monstruosa, com quem Pedro e depois Laidinha, estabelecem uma relação de confiança, espécie de esfinge, “com voz doce de mulher”, a Senhora do Moinho: «Estou nos capítulos finais de todas as histórias que conto.» (p. 77). Um cenário para uma, várias tragédias dificilmente ultrapassáveis: «aceitar o fim de alguém é consentir o nunca mais» (p. 33). Será no regresso às origens da memória que Pedro encontrará a sua redenção: «Nunca me senti ser dali e ao mesmo tempo / nunca pertenci tanto a um pedaço de chão. » (p. 8)
Os tons suaves do desenho de Bernardo Majer, vinhetas sem cercadura, traço como que de ilustrador, à partida poderiam não ser os mais indicados para uma narrativa trágica como esta, pois Toutinegra sendo uma história sobre um miúdo, é tudo menos um livro infantil; e por várias vezes o nome de Didier Comès nos assomou na leitura e releituras – Toutinegra é um livro que se presta a revisitações. Mas à medida que o texto ia tomando conta de nós, mais se tornava evidente o erro e o preconceito dessa concepção do primado das trevas, aliás bem presentes, carecesse de sobressair na parte desenhada desta narrativa: para muitos o terror não é o negro que cobre, mas o branco que tudo desvela.
Toutinegra
texto: André Oliveira
desenhos: Bernardo Majer
edição: Polvo, Lisboa, 2019


quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Franquin antes de Gaston

Em 1955, Franquin estava em conflito com o editor Charles Dupuis, proprietário da revista Spirou. O autor criara já alguns dos maiores títulos da aventuras do jovem groom, como Os Herdeiros e O Roubo do Marsupilami. Na revista concorrente, Tintin, Raymond Leblanc, homem da Resistência belga que deu o braço a Hergé no pós-Guerra, torcia o nariz à circunspecção em demasia do hebdomadário, faltava-lhe humor. Estava, pois, criada a oportunidade para Franquin trabalhar na revista de Hergé e Jacobs.

Modeste et Pompon, série discreta mas importante para o desenvolvimento do percurso do seu criador, gira em torno do irascível Modesto, a namorada Pompom, contraponto de bom-senso, de Félix, um vendedor de inutilidades, além de três sobrinhos pestes -- condimentos para diversas peripécias de grande comicidade. É aqui que Franquin ensaia os esquemas insanes que depois iremos encontrar em Gaston Lagaffe, já de volta à Spirou; mas poderemos também vislumbrar algumas situações que viria a explorar nas Ideias Negras, expressão do seu lado mais sombrio.

A série foi continuada por Dino Attanasio (co-criador, com Goscinny, de Il Signor Spaghetti), Mittëi (O Incrível Désiré), entre muitos outros, com várias perninhas de alguns dos maiores autores do tempo: Peyo (Schtroumpfs), Tibet (Ric Hochet, Chick Bill), Greg (Achille Talon, Bernard Prince, Comanche), Van Hamme (História sem Heróis, XIII), Godard (Martin Milan)…

Modesto e Pompom

texto e desenhos: Franquin

edição: Asa, Porto, 2005

sábado, 14 de dezembro de 2019

viva o povo brasileiro

É um lugar-comum dizer-se que no estrangeiro vemos o torrão natal com mais acuidade, e o exemplo que logo surge é o de Eça de Queirós, cujos romances foram escritos em Inglaterra e França. É verdade, embora todo o espírito crítico e toda a empatia do autor de O Primo Basílio já estivessem contidos nas páginas de imprensa, da Gazeta de Portugal e O Distrito de Évora. Marcello Quintanilha (Niterói, 1971) vive há longos anos na Europa, mas nem por isso aquelas qualidades estão ausentes, pelo contrário: as seis narrativas de Folia de Reis constituem-se como um olhar pleno de ternura, mas sem embelezamento, dirigido ao povo brasileiro.
E quem são estes 'reis' de Quintanilha? Gente de paz e trabalho, gente de bem; o povo falando na sua língua errada que é a sua língua certa de onde chega a vida com verdade, dizia o grande Manuel Bandeira; que procura levar cada dia por diante, com o auxílio mágico/místico sincrético do 'Senhor Jesus' em combinação com a religiosidade popular de extracção africana, que tão perseguida foi. E do lenitivo dominical do futebol. Todas as seis estórias deste livro estão encorpadas por esse desafio do quotidiano, do torcedor do Flamengo a.J. (da era antes de Jorge Jesus...), doentiamente supersticioso (como vemos em “De como Djalma Branco perdeu o amigo em dia de jogo”), ao trabalhador negro que ainda não extirpou do seu interior a condição submissa inculcada pela persistência duma mentalidade gerada numa sociedade escravocrata (no impressionante «Dorso»); do matuto inofensivo ajudante dum circo de província, vítima da 'autoridade' brutal («A fuga de Zé Morcela»), ao futebolista medíocre duma equipa dos baixos escalões regionais, tornado, por cómico equívoco dos vizinhos, como potencial e quase certo jogador de selecção, sedentos que estão dum 'milagre' que lhes transforme a modorra de vida num lugar onde o diabo perdeu as botas (“De pinho”).
No meio destas narrativas de muito bom nível, destacamos uma jóia intitulada “Escola Primária”, estória de Selma e Tiago, este seguidor da religião do candomblé, aquela evangélica. Jovem adulta a frequentar os cursos de alfabetização pede ajuda a Tiago, pescador instruído (sabe ler e escrever) para um trabalho de casa sobre a História do Brasil, de modo a ficar com tempo livre para poder ir à festa da aldeia nessa noite. Selma bebe-lhe as palavras sobre os navegadores portugueses, os índios, os negros escravizados, as guerras – as dos estados e a deles mesmos: “A vida da gente já é uma guerra!”, exclama. Na prancha final, cujo conteúdo não se revela, espelham-se e esplendem as qualidades autorais de Marcello Quintanilha, argumentista e desenhador de quadrinhos.

Folia de Reis
texto e desenhos: Marcello Quintanilha
edição: Polvo, Lisboa, 2019


sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

desventuras do himeneu

Tal como Jacobs se retratou fisicamente no Coronel Olrik, arqui-inimigo de Blake e Mortimer, sendo ao que se sabe pessoa respeitadora da lei, também George McManus (1884-1954), designer de moda, caricaturou parte da fisionomia, aplicando-a aos traços do castiço Jiggs (que os brasileiros, com propriedade, renomearam como Pafúncio).
Bringing Up Father / Educando o Pai, cujas tiras apareceram na imprensa norte-americana em 1913, conta-nos o quotidiano duma família de novos ricos. De origem irlandesa, Pafúncio fora um trolha a quem saíra a sorte grande. Impecavelmente vestido (chapéu alto, colete distinto, polainas), bengala numa mão e charuto aceso, nunca deixou de ser um homem simples, cujas ambições, para além do vil metal, se resumiam a umas horas de pândega com os amigos. A mulher, Maggie (Marocas, na versão brasileira), antiga lavadeira, deslumbra-se com vestidos, jóias, a ópera, a sociedade – um tormento para o pobre cônjuge, que ainda tem de aturar os caprichos sentenciosos da filha, Norah, espécie de pin up langorosa.
A série anda pois à volta destas idiossincrasias de marido pelos cabelos com as pretensões operáticas da mãe e as maneiras dispendiosas da filha, quando não tem que levar com os cunhados penduras, todos cadastrados e recém-saídos da prisão. Escapar-se à família sem ser vítima de violência doméstica é sempre o grande móbil destas tiras, em que o protagonista ora tem êxito ora (na maioria das vezes) soçobra à ira conjugal.
Pafúncio
texto e desenhos: George McManus
edição: Martins Fontes, São Paulo, 1989

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

o Cid da Cidadela

A história contrafactual oferece possibilidades infinitas, com a vantagem, quanto a nós, sobre outro tipo de narrativas especulativas, pelo facto de as coordenadas serem mais reconhecíveis.
E se a Guerra Fria tivesse degenerado, com um conflito nuclear em solo europeu entre os Estados Unidos e a União Soviética? E se, em consequência da desarticulação política dos estados do Velho Continente, a História houvesse tomado um rumo distinto, não tendo sequer ocorrido a revolução portuguesa em 25 de Abril de 1974? Eis os pressupostos da série Ermal, da autoria de Miguel Santos.
No Hemisfério Sul, na capital de uma “província ultramarina”, os colonos portugueses e os que, vindos da Europa, conseguiram escapar, reorganizam-se por acção dos Capitães de Maio, um grupo de militares que tem para si a missão de assegurar a subsistência da nova cidade-estado. Esta não é mencionada, mas será Luanda – agora com o nome de “Cidadela”. Este reduto do antigo império colonial português tem de defrontar os colectivistas do exército proletário, entretanto tomado de assalto pela cupidez – o petróleo está ali à mão... –, o que levará a dissensões no seu seio. Tina, uma guerrilheira grávida e destemida, dirá a um tuga: “Uns turras são pela tirania, outros não.”
Dos Capitães de Maio sobressai o ‘Cid’, nome de guerra em homenagem a Rodrigo Díaz de Bívar, o Campeador castelhano contra os mouros, no século XI. Este Cid da Cidadela, de tez morena e com verbo fácil e cultivado, está em missão com o fim de captar o auxílio de um grupo armado não alinhado, como aliados contra os totalitários. Com a Cidadela envolvida por forças hostis, o inimigo do inimigo aliado pode ser.
A paisagem é a savana, e os bichos são os carros de combate, ou o que dentro deles evolui, não faltando mercenários e peões a falar o africânder (os sul-africanos) e o castelhano (os cubanos). As imagens dessa movimentação de homens e armas, evocaram a este leitor a célebre batalha do Cuito Cuanavale, o maior combate terrestre a ter lugar após a II Guerra Mundial, tão avassalador quanto inconclusivo, deixando marcas nos contendores, em especial nos que não tinham ligação àquele solo. Mas isto é a imaginação a funcionar, pois se não houve 25 de Abril, também não se deu a descolonização e muito menos se realizou tão fantástica refrega…
Sementes no Deserto é o terceiro livro desta série, depois de Quando a Guerra Fria Aqueceu e Terra e Sangue. São nítidas as qualidades narrativas: os diálogos, fluentes, rápidos e vivos, quando existem; e quando tal não sucede, a concepção das vinhetas, com recurso a vários planos (veja-se a operação militar, a páginas 26-28), alcança um bom dinamismo – um dos aspectos mais fortes desta BD, em que é visível o gosto de contar uma história original com vivacidade.
Ermal – Sementes no Deserto
texto e desenhos: Miguel Santos
edição: Escorpião Azul, 2019

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

onde está Tintin?...

Na década de 1930 Tintin suscitava reservas ao conservadorismo: não tinha família, não estudava, era demasiado livre. A revista Coeurs Vaillants propõe assim a Hergé uma série com crianças normais, inseridas numa família tradicional. Nascem então Jo, Zette et JockoJoana, João e o Macaco Simão, em português –, os gémeos da família Legrand, composta pelo pai engenheiro, a mãe doméstica, e um chimpanzé.
O Vale das Cobras em curso de publicação 1939, foi interrompido e só retomado na década de 1950, pelos Estúdios Hergé, concluído por Jacques Martin (Alix, Lefranc) e Bob de Moor (Barelli, Cori, o Grumete), saindo o álbum em 1957.
Numa estância de neve na Alta Sabóia, Joana, João e Simão cruzam-se com o Marajá de Gopal, rei dum país imaginário nos Himalaias indianos. O marajá merece, por estupidez própria, figurar na galeria das grandes personagens secundárias de Hergé, que o qualificava como um Abdalá (O País do Ouro Negro) adulto. Entra em conflito com os miúdos porque estes ousam ultrapassá-lo no ski, e como se não bastasse ainda apanha com uma bola de neve em cheio na cara. Qualquer contrariedade tinha como punição mínima o açoitamento do infractor, pelo que as coisas não poderiam correr-lhe de feição, quando intervém o pai Legrand. Sanados os hilariantes incidentes, o engenheiro é convidado pelo soberano a construir uma ponte numa região remota do país. O que ambos não sabem é que o seu vizir pretende dar um golpe e ser marajá no lugar do marajá…
Mesmo a seis mãos, trata-se de puro Hergé, dando ideia, ao virar de cada página, que Tintin vai aparecer por ali...
Aventuras de Joana, João e do Macaco Simão – O Vale das Cobras
texto e desenhos: Hergé (com Jacques Martin e Bob de Moor)
edição: Difusão Verbo, Lisboa, 1981

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

toy stories

Alvitre ao leitor: quando estiver com este livro nas mãos, comece por não ler, mas observar; folheie demoradamente, deixe os olhos vogarem ao ritmo que o autor imprimiu a cada prancha, depois fixe as vinhetas, demore-se nas páginas, nos diversos e bem doseados planos dos quadradinhos, admire o excelente trabalho de claro-escuro, a partir, supomos, de vários tipos de canetas de feltro; chegue ao fim, e então comece a leitura. Está por sua conta.


Pum! / Qual Pum! É Bang! Isto é BD! / ? / Crack! à la Hugo Pratt. / Click! Vazio. // Toca a mexer malta, ou acabamos num caixote no sótão ou na Feira da Ladra.» Palavras iniciais deste livro de Filipe Abranches (Lisboa, 1965), Selva!!!: diálogos de soldadinhos de guerra em missão por floresta espessa ou sobre oceanos de mar revolto.


Todos quanto, rapazes (e raparigas, porque não?...), brincámos aos tiros com miniaturas, recordamo-nos dos incríveis teatros de guerra que criávamos. Índios e cowboys, aliados e nazis, unionistas e confederados, mouros e cruzados. Uns quantos livros de capa dura dispostos no chão do quarto dava para fazer um qualquer forte da cavalaria americana ou um castelo medieval, à falta de modelos de escala reduzida. Os bonecos eram da “Britains”, muito bem feitos, em resina de poliester com uma base verde, de metal; ou então uns bonecos da “Airfix”, para quem quisesse e tivesse paciência para pintá-los... Experimentavam-se as tácticas com a imaginação e a ajuda do cinema, televisão e revistas aos quadradinhos. Uma delas, aqui graficamente citada, o Falcão, com estupendas séries fixas, edições distribuídas pela Agência Portuguesa de Revistas: Sandor, Ogan, Oliver, Kalar e o Major Alvega.


História dentro da história, intromissão do real na ficção, uma vinheta em falta, pórticos que se atravessam, do mundo da imaginação ao mundo verdadeiro, onde a mentira é maior: a guerra tem sempre acoplada a palavra “Paz”, com maiúsculas e tudo. Ainda agora a vimos, na operação “Paz para a Primavera”, turcos contra curdos, uns que contemporizaram com o Daesh, outros que lutaram contra ele, também em nosso benefício. Parece que há mais verdade na BD, mesmo que os intervenientes sejam de poliester ou plástico.


No colofão, o autor lembra os pais, que lhe compravam saquetas com revistas aos quadradinhos para ler na praia, e agradece também ao “Buck Dany”, a quem roubou muitas vinhetas. Buck Dany, extraordinária BD de guerra e aviação criada pela dupla Jean-Michel Charlier – Victor Hubinon para a revista Spirou (os mesmos que conceberam o pirata Barba Ruiva para as páginas da Pilote). Sim, há aqui grandes quadr(ad)os inspirados na arte daquele mestre belga, homenagem com maturidade gráfica de quem já leva anos disto.


Selva!!!


texto e desenhos: Filipe Abranches


edição: Umbra Edições, 2019


quarta-feira, 20 de novembro de 2019

o menino Ferreira de Castro

As terras têm o seu património, natural, etnográfico, arquitectónico. O legado literário em geral dá-lhes, porém, mais densidade. Amarante, com Pascoais, Vila do Conde tem Régio e o irmão Júlio/Saul Dias, Rio Maior e Ruy Belo, a Vila Franca de Xira de Alves Redol. Oliveira de Azeméis tem Ferreira de Castro, e a autarquia editou, no ano seguinte ao centenário do seu nascimento, uma BD para as crianças, da autoria do conterrâneo Manuel Matos Barbosa (1935), um nome do cinema de animação e do documentarismo.
Castro tem excesso de biografia: aos 12 anos emigrou sozinho para o Brasil, sendo enviado para um seringal na Amazónia. Dessas experiências extrairá matéria para dois extraordinários livros, que irão renovar o romance português, abrindo portas ao neo-realismo: Emigrantes (1928) e A Selva (1930). Porém, verdadeiro escritor, não se ficaria por aqui: Eternidade (1933) encerra um fundo existencialista numa narrativa de cunho social; A Lã e a Neve (1947), friso romanesco que é talvez o seu romance mais perfeito; ou A Missão (1954), uma novela que é uma jóia de problematização psicológica.
Como se fosse pouco, este autodidacta, foi durante décadas o escritor português mais traduzido, duas vezes proposto para o Nobel da Literatura, entre muitos outros factos que aqui não cabem. Mas o cerne dessa vocação está na primeira infância, na aldeia natal de Ossela, e Matos Barbosa, com um traço límpido e tons suaves, foi feliz em mostrá-lo.
O José Foi à Escola
texto e desenhos: Matos Barbosa
edição: Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis, 1999


terça-feira, 19 de novembro de 2019

a malta é jovem

Um cínico diria que o magistério uma profissão extraordinária, não fora a existência dos alunos. Discorda-se do cínico: o problema não está nos discentes, mas na circunstância de alguns trazerem como bónus alguns pais muito pouco recomendáveis à saúde. Também há os simulacros de professores, cuja verdadeira missão é a de ganhar o ordenado enquanto sonham com uma reforma por invalidez. No princípio de tudo, porém, estão burocratas do ministério, entretidos com as suas carreiras e progressões nas ditas, trabalhando para as estatísticas que lhes são impostas pelos políticos de turno. Destes, uns são comissários do partido e outros, tipos bem intencionados, com ideias completamente diferentes dos antecessores no cargo, que as porá em prática até chegar quem lhe suceda. Por isso, os estudantes costumam ser as primeiras vítimas deste carnaval, seguindo-se os bons professores e os pais conscientes, espécie ameaçada.
Feito o exórdio, comece-se por dizer que o professor Álvaro é um baril, e houvesse necessidade de filho nosso precisar de explicações de Geometria Descritiva, já saberíamos a que porta bater. Mas o professor Álvaro é também autor de BD e cartunista (além de arquitecto de formação) e teve a boa ideia de se inspirar no seu ganha-pão para aplicar o talento que lhe assiste na recriação da sua circunstância profissional – embora tal esteja longe de ser o exclusivo da matéria-prima a que recorre para o trabalho bedéfilo.
Conversas com Putos e com os Professores Deles é o terceiro livro desta série. Deixamos os docentes em paz – os muito bons dificilmente são parodiáveis, os maus são paródia triste – e vamos à maralha de 15, 16, 17 anos e às suas lindezas: do acne, terror das miúdas, à javardolice flatulenta dos rapazes; dos futebóis aos jogos e consolas (ou as gajas); da seca da matéria e da cabulice – as cenas com os alunos passam-se normalmente em contexto de explicação –, a temas mais sérios de política e sociedade, sempre com o enviesamento da auto-suficiência das opiniões fortes e supostamente definitivas, pois os putos é que sabem...
Álvaro (Parede, 1970) é particularmente feliz na captação das expressões que resultam de diálogos que atingem o mirabolante (por vezes nem se trata de diálogo mas de resmungos, quando não grunhidos): do surprendido ao irritado, do facecioso ao conformado, do enfadado ao malicioso. Não se pense, porém, que o autor comete a feia acção de fazer nome e fortuna (pelo menos crítica) à custa daqueles infelizes. Não, ali há empatia e pundonor profissional, ambos especialmente necessários, quando aos professores de hoje (aos bons e até aos maus) é cometida pela sociedade não apenas a importante função de ensinar, mas também, quantas vezes, a ingrata tarefa de educar, competência que mingua a muitos paizinhos, sempre prontos a exigir dos docentes o suprimento do que a eles lhes falha.
Conversas com os Putos e com os Professores Deles
argumento e desenhos: Álvaro
edição: Insónia, São Domingos de Rana, 2019





domingo, 17 de novembro de 2019

"não é fácil o amor"

...melhor seria arrancar um braço”... canção de Janita Salomé que veio à cabeça ao relermos O Amor Infinito que Te Tenho (2011), de Paulo Monteiro (Vila Nova de Gaia, 1967). Com dez curtas narrativas (um índice daria jeito...), é poesia posta em quadradinhos, sem surpresa, pois o autor é também poeta, embora bissexto.
Histórias muito centradas nas suas circunstâncias pessoais, nem por isso deixam de interessar em várias latitudes – ou não fosse este um livro com várias traduções, e não fosse também o ser humano igual por toda a parte. Amor filial, amor paternal, amor conjugal, amor impossível, amor altruísta, amor egotista, amor que tem à espreita o seu próprio fim, pois que tudo desesperantemente acaba; BD ora solar ora de trevas, quanto mais negra mais carregadas as vinhetas, e mais limpas quanto mais jubilosa.
No fim, Monteiro incluiu excertos do diário da feitura do livro, motivo suplementar de interesse em que podemos acompanhar os itinerários de criação – os sucessos: «3h30 de trabalho. Hoje saiu-me tudo bem! E se eu desenhasse sempre assim? 3H30 e duas vinhetas!» (4.1.2009); os fracassos: «Parti a caneta com toda a força contra o estirador e saí para a rua desvairado e furioso comigo mesmo.» (22.10.2008); e os impasses: «É só um livro com meia dúzia de histórias. O importante é a vida. Vou ouvir a Amália. Os fados alegres, claro.» (16.2.2009).
O Amor Infinito que Te Tenho e Outras Histórias
texto e desenhos: Paulo Monteiro
2.ª edição, Polvo, Lisboa, 2012


quarta-feira, 13 de novembro de 2019

um duro coração de manteiga


Na vinheta inicial, sob um sol de canícula, um abutre de longas asas estendidas voa com a cabeça inclinada para o solo; a seguir, em grande plano, vemo-lo a fixar o olhar em algo; depois, a carcaça de um cavalo sendo devorada por um bando de aves; no quarto quadradinho, com o mosquedo a voltear, a carniça é arrancada pelos fortes bicos concebidos para retalhar. A partir da segunda vinheta, filacteras sem o apêndice característico transmitem-nos as reflexões de alguém: «As pessoas não gostam de nós. / Há quem diga que é porque passamos o nosso tempo no meio de cadáveres. / Transmitimos a morte como outros transmitem bexigas. / Também consta que cheiramos mal e que podemos dar azar. / Vá-se lá saber onde foram buscar isso! / A verdade é que as pessoas não gostam de nós. / E ainda bem.» Quinta e última vinheta da primeira prancha: um homem ainda novo, de barba cerrada, vestido de escuro, sentado de caneca na mão e cigarrilha na boca, encostado à carreta que lhe pertence, completa agora o seu pensamento: «Também não gosto delas.» É Jonas Crow – um gato-pingado, um cangalheiro – o herói desta série. Acompanham-no “Jed”, um abutre de asa embriada que Jonas não teve coragem de matar, e os dois cavalos da carroça funerária: “Zephyr” e “Cobalt”.
Pela amostra deste primeiro álbum, publicado originalmente pela Dargaud Benelux, em 2015, a saga de Jonas Crow tem tudo, autores e assunto, para vingar. O texto é de Xavier Dorison e o desenho de Ralph Meyer, ambos parisienses de 1971. O primeiro é argumentista exímio (O Terceiro Testamento, sequelas de XIII e Thorgal); Meyer, tem um lápis ágil e espectacular, além de abundantes recursos expressivos. Diga-se, a propósito, que a semelhança fisionómica com Mike T. Blueberry é, mais do que intencional; é um elo que os autores criam – por razões que nesta fase não são claras – à melhor BD western. A cada um a possibilidade de especular...
Crow é uma personagem, é a personagem: solitário, misterioso (transporta uma história consigo), de mão leve com a artilharia e raiva interior que o tornam temível, além de um coração de manteiga, capaz dos gestos mais altruístas – e também divertidos, como aquela citação da “Epístola de São Paulo aos Californianos”… Se o Duke, de Hermann e Yves H., de quem já aqui falámos, é um pistoleiro que não gosta de armas, Jonas Crow é uma máquina de matar que odeia violência... Aliás, o que não falta é um conjunto de personagens fortes, que tornam este western intenso e áspero, embora a violência não seja gratuita, antes uma exigência da própria trama, dotada destas personagens específicas: um antigo garimpeiro às portas da morte, dono duma cidade, ganancioso e cruel, uma jovem governanta inglesa hierática e sensual, um criado de casa ressentido, uma velha chinesa perspicaz, um xerife venal, e por aí fora, em intriga estonteante.
Undertaker – 1. O Devorador de Ouro
argumento: Xavier Dorison
desenhos: Ralph Meyer
cor: R. Meyer e Caroline Delabie
edição: Ala dos Livros, Benavente, 2019

sábado, 9 de novembro de 2019

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

um mundo à parte

Jeff Smith (The Rocks, Pensilvânia, 1960) integrou cedo a família de autores que criam o que gostariam de fruir, talvez farto das oferta corrente (mutantes e outras criaturas de várias cores em remultiplicação infinita). As influências são as dos velhos comics, de Walt Kelly (Pogo) a Carl Barks (Tio Patinhas), mas também Moebius. Will Eisner, entusiasmado, falou de Herriman (Krazy Kat); outros referiram-se a Schulz (Peanuts) – tudo gente de alto coturno, a que se juntam referências literárias (Mark Twain, Tolkien), para não falar do cinema (Star Wars). Daqui e do mais extraiu esta criação original que dá pelo nome de Bone, publicada entre 1991 e 2004.
Mundo à parte, em que o maravilhoso e o fantástico se conjugam, os Bones são criaturas alvas como um osso de BD. Três primos estão na base da série: Fone Bone, sensato e sensível, Phoney Bone, autoritário e ganancioso, Smiley Bone, um simplório. Execrado e expulso de Bonneville, Phoney leva consigo os dois parentes. Perdidos no meio dum deserto não assinalado nos mapas, são assaltados por uma nuvem de gafanhotos e dispersam-se. Fone Bone, a personagem principal, dá por si numa superfície escalavrada, avistando ao longe uma floresta – típico tópico de interdição e perigo – , com um vale no centro. Aí vive uma pré-adolescente por quem Fone se apaixona, chamada Thorne (‘Espinho’), com uma avó muito peculiar, e também afáveis criaturas do bosque, além de horrendas ratazanas do tipo pós-nuclear. Por todo o lado, um original dragão da guarda faz aparições inesperadas; e à medida que o enredo se intrinca, mais queremos entrar nesse estranho universo.


Fora de Boneville
texto e desenhos: Jeff Smith
edição: Via Lettera, São Paulo, 2002



quarta-feira, 6 de novembro de 2019

resistir é vencer

Valério, arquitecto de meia-idade, passeia pelas ruas com um carrinho-de-mão carregado de tijolos. Em flashback, ficamos a saber que quando a Troika se instalou, a oficina de arquitectura onde trabalhava fechou portas, solidária à força com o empobrecimento geral do país, pobreza em que caíramos por entre esquemas de variegada proveniência, políticas de sentido único e prestidigitações financeiras. Nas mãos dos mercados, esse Shazam! da modernidade dos povos talhados para as alegrias do 5G, foi um ver-se-te-avias na degradação do nosso viver habitualmente. Os portugueses medianos, ingeridos sem esforço, tornaram-se bons nutrientes para a comilança da banca e a veniaga partidária; os pobrezinhos e sobrantes, alavancaram o elevador espiritual de muito bom praticante de banco alimentar, cujo Céu certamente foi ganho.
O desempregado Valério resolve então recuperar a casa que lhe ficara dos avós que, com espanto e indignação, descobre ocupada por gente sem-abrigo & outros desqualificados. Porém, à síncope que então o acometeu, seguida de internamento, sobreveio um outro olhar sobre o real, e tudo deixaria de ser como fora até aí: Valério passa a prestar atenção aos outros – «construir para resistir» torna-se uma divisa. E deste modo pretendeu edificar uma outra realidade, diferente da liquefação contemporânea sem horizontes para muitos, nem tecto ou chão, como se de um novo ajustamento se tratasse, desta vez o da decência, à margem da mercantilização da cidade e de quem nela vive.
Os portugueses, e os lisboetas em particular, passaram agora a andar ditosos com a procura turística. Não há cidade que aguente ou aeroporto que chegue para tanta oportunidade de fazer dinheiro Pelo meio desta “avidez da ganhuça” – para citar o escritor anarquista Assis Esperança (1892-1975) –, haverá sempre tipos estranhos que recolhem tijolos, para desdém dos empreendedores e desgosto dos presumíveis herdeiros.
Com uma composição dinâmica de cada prancha, em que a vinheta tradicional está implícita ou simplesmente não existe, a benefício da fluidez narrativa, Pedro Burgos (Lisboa, 1968), ilustrador e arquitecto que “gosta de desenhar histórias aos quadradinhos sem quadradinhos”, como reza a contracapa, dá-nos em O Coleccionador de Tijolos uma parábola dos tempos que correm.
A leitura lembrou-nos por vezes o Will Eisner do The Building, de que já falámos; outras, a poética do franco-grego Fred, criador do maravilhoso Philémon. A edição é cuidada, com atenção aos pormenores (por exemplo, a analepse impressa em papel doutra cor). Mestria na composição, solidez de ponto de vista, que não nos deixa indiferentes, humor e amor em doses comedidas – o que mais se pode querer de uma BD?
O Coleccionador de Tijolos
argumento e desenhos de Pedro Burgos
edição: Chili com Carne, Cascais, 2019


segunda-feira, 4 de novembro de 2019

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

um pequeno malcriado

Titeuf, abreviatura de 'petit œuf '' ('pequeno ovo', por óbvias razões anatómicas), é uma personagem criada em 1993 pelo autor suíço Zep (Philippe Chappuis, Onex, Genebra, 1967), pseudónimo que é uma homenagem aos Led Zeppelin. À partida, ‘Ovinho’ seria uma tradução aceitável para o nome da personagem, não fora esta ser por vezes um bocadito alarve: com cerca de oito anos, e um topete que parece uma hipérbole do cabelo de Tintin, Titeuf é um reguila desabusado, por vezes malcriado, que quer dar nas vistas para parecer mais importante e mais crescido do que na verdade é – e também para que as miúdas reparem em si. Um rapazelho como muitos outros, portanto... Até hoje foram editados 18 álbuns, com claro sucesso de público e crítica: tiragem de milhões de exemplares, adaptação a cinema de animação e o merchandising habitual.
Em Petit Poésie des Saisons (de 2005, agora reeditado com nova capa) assistimos ao decorrer das estações do ano, tal como Titeuf e os amigos as vivem; e claro que a poética a que o título alude não pode deixar de ser irónica: a areia da praia intromete-se nos mais recônditos e incómodos interstícios; o salpico de neve que lhe cai em cheio na roupa está longe de ser alvo e imaculado. Quanto ao mais: a escola, o cair da folha e o obrigatório Halloween, no Outono; escola, bonecos de neve, frio e o Natal, no Inverno; escola, o despertar da Natureza e das paixões, as partidas do 1.º de Abril, na Primavera; no Verão, as férias grandes, as festas... e a escola, a começar no início de Setembro, em eterno retorno de trapalhadas, triunfos e desaires à escala minorca, sempre acolitado pela família, a inevitável professora velha e feia, os indispensáveis compinchas, e uma certa Nadia, a quem Titeuf arrasta a asa, quando distraído das suas actividades mais sérias, ou seja, pregar partidas e fazer que estuda.
Em 2001, Zep e Hélène Bruller, então sua mulher, criaram um livro extra-série, Le Guide du Zizi Sexuel (Aparelho Sexual & C.ª, na tradução brasileira), obra pedagógica destinada aos pré-adolescentes, que teve a duvidosa distinção de ser apresentada por Bolsonaro, como exemplo do alegado 'kit gay' e incitamento à pedofilia...
A fórmula do gag é clássica: exposição, desenvolvimento e remate, sempre cómico e/ou inesperado. Há um, porém, que foge a esse esquema, o dedicado às mentiras do 1.º de Abril: em seis vinhetas Titeuf prega partidas em casa e na escola, rindo-se a bandeiras despregadas; na sétima, ao fim do dia, será a vez da televisão pregar a sua mentira aos telespectadores (assim acreditava o rapaz): uma intervenção militar no Iraque, diz o pivot, fará milhares de vítimas. Titeuf não viu onde estava a graça. Os mentirosos eram outros, já então se sabia.

Titeuf – Petite Poésie des Saisons
texto e desenhos: Zep
edição: Glénat, Grenoble, 2019


sexta-feira, 25 de outubro de 2019

very british

A propósito de Raymond Macherot (1924-2008), um mestre da BD franco-belga, Hergé, que muito o admirava, foi um dia taxativo: «Macherot c'est Macherot...». Uma das suas personagens mais queridas, fruto do fascínio que sobre si exercia a Inglaterra, é o patusco Coronel Clifton – Harold Wilberforce Clifton, oficial reformado do MI5, detective amador, escoteiro graduado, com um fleumático bigode imperial, indumentária impecável, governanta previdente e um MG-Type Midget de fazer inveja, ideal para as deslocações entre Londres e a cidadezinha fictícia de Puddington, onde vive.
Macherot assinou apenas três álbuns – e com que sedutora simplicidade de linhas e eficácia narrativa. A transferência da revista Tintin para a rival Spirou obrigou-o a largar Clifton, bem como Clorofila, um rato do campo de quem oportunamente falaremos.
Em As Investigações do Coronel Clifton, publicadas em 1961, um emir das Arábias deposita o maior diamante do mundo no estabelecimento de dois honrados ourives da capital inglesa, para que estes lhe façam um exuberante anel. Assustados com o montante do seguro, optam por guardá-lo no cofre da casa, um impante «”Johnson” superblindado de tripla combinação», mas – estava-se mesmo a ver – no dia seguinte os honestos joalheiros darão de caras com o sítio... Para evitar o escândalo do assalto, recorrem aos serviços do famoso militar retirado.

As Investigações do Coronel Clifton
texto e desenhos: Raymond Macherot
edição: Editorial Íbis, Venda Nova, 1969


terça-feira, 22 de outubro de 2019

mais olhos que barriga

Criado em 1991 pelo norte-americano Rob Liefeld e o argentino Fabian Nicieza, Deadpool é mais um elemento da parafernália de superentidades da Marvel: vilão mutante cujas características notórias são a capacidade de auto-regeneração dos órgãos e tecidos, alguma esquizofrenia, pois tanto combate como admira as grandes figuras mascaradas, e uma incontida tagarelice. A propensão para o cómico é evidente, facilitando a criação da série paralela intitulada Killogy,  imaginada por Cullen Bunn e Matteo Lolli.
A ideia até é boa: depois de chacinar os heróis da Marvel (Deadpool Kills The Marvel Universe, 2011), com o fito altruísta de libertá-los dos caprichos dos seus criadores – mas na verdade manobrado por um qualquer génio do mal –, e antes de matar-se a si mesmo (Deadpool Kills Deadpool, 1913), o vilão é persuadido pela Brigada dos Cientistas Loucos a liquidar as maiores personagens da literatura, fonte de todos os super-heróis, e a única forma de acabar com eles definitivamente. Por exemplo, a morte da Sereiazinha inviabilizará Namor, o príncipe submarino, e o fim dos Três Mosqueteiros ou das Mulherzinhas impedirá a formação de futuras equipas de heróis e heroínas...
Boa a ideia, mas demasiado ambiciosa. Graças a um dispositivo de Reed Richards, do Quarteto Fantástico, Deadpool conseguirá viajar no espaço e no tempo. Da Odisseia à Metamorfose, do D. Quixote ao Sr. Scrooge, passando pelo Pinóquio (saído do interior de Moby Dick), contámos 23 referências, mais ou menos desenvolvidas, número certamente excessivo para as 80 páginas disponíveis. Podemos meter Gulliver ou Macbeth numa única vinheta, mas fazer o mesmo ou parecido com as sucessivas obras denota o propósito de citar o mais possível, em sacrifício da fluência narrativa. Além disso, a carnificina é sem descanso, como um videojogo para adolescentes retardados, em maçador acumular de pancadaria e larachas.
O trabalho de Lolli tem bons momentos: o massacre da tripulação do “Pequod”, a tareia das Mulherzinhas, Deadpool trespassado pelo chuço do Quixote. Mas o melhor mesmo está nas capas de Mike del Mundo.
Um dos aspectos mais desagradáveis dos comics é o imperativo de fazer dinheiro a todo o transe, sujeitando os pobres super-heróis a inenarráveis tratos de polé: matam-nos, ressuscitam-nos, casam-nos, mudam-lhes a fatiota, a cor da pele e até o sexo, criam séries paralelas em mundos alternativos, deixando à nora o desgraçado leitor que não seja um incondicional... Ao mesmo tempo, criam-se mais heróis e vilões, com as suas evoluções e especificidades, assim à maneira dos pokémons. O que importa é fazer render o peixe. O coitado do Homem-Aranha tem sido a principal vítima deste festival de ganância, o que não é de admirar, tratando-se a mais icónica e portanto a mais rentável marca da sua editora. É verdade que, por vezes, surgem pepitas, mas este não é o caso.
 
Deadpool Mata os Clássicos!
texto: Cullen Bunn
desenos: Matteo Lolli
edição: G. Floy Studio, 2019