quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

o Cid da Cidadela

A história contrafactual oferece possibilidades infinitas, com a vantagem, quanto a nós, sobre outro tipo de narrativas especulativas, pelo facto de as coordenadas serem mais reconhecíveis.
E se a Guerra Fria tivesse degenerado, com um conflito nuclear em solo europeu entre os Estados Unidos e a União Soviética? E se, em consequência da desarticulação política dos estados do Velho Continente, a História houvesse tomado um rumo distinto, não tendo sequer ocorrido a revolução portuguesa em 25 de Abril de 1974? Eis os pressupostos da série Ermal, da autoria de Miguel Santos.
No Hemisfério Sul, na capital de uma “província ultramarina”, os colonos portugueses e os que, vindos da Europa, conseguiram escapar, reorganizam-se por acção dos Capitães de Maio, um grupo de militares que tem para si a missão de assegurar a subsistência da nova cidade-estado. Esta não é mencionada, mas será Luanda – agora com o nome de “Cidadela”. Este reduto do antigo império colonial português tem de defrontar os colectivistas do exército proletário, entretanto tomado de assalto pela cupidez – o petróleo está ali à mão... –, o que levará a dissensões no seu seio. Tina, uma guerrilheira grávida e destemida, dirá a um tuga: “Uns turras são pela tirania, outros não.”
Dos Capitães de Maio sobressai o ‘Cid’, nome de guerra em homenagem a Rodrigo Díaz de Bívar, o Campeador castelhano contra os mouros, no século XI. Este Cid da Cidadela, de tez morena e com verbo fácil e cultivado, está em missão com o fim de captar o auxílio de um grupo armado não alinhado, como aliados contra os totalitários. Com a Cidadela envolvida por forças hostis, o inimigo do inimigo aliado pode ser.
A paisagem é a savana, e os bichos são os carros de combate, ou o que dentro deles evolui, não faltando mercenários e peões a falar o africânder (os sul-africanos) e o castelhano (os cubanos). As imagens dessa movimentação de homens e armas, evocaram a este leitor a célebre batalha do Cuito Cuanavale, o maior combate terrestre a ter lugar após a II Guerra Mundial, tão avassalador quanto inconclusivo, deixando marcas nos contendores, em especial nos que não tinham ligação àquele solo. Mas isto é a imaginação a funcionar, pois se não houve 25 de Abril, também não se deu a descolonização e muito menos se realizou tão fantástica refrega…
Sementes no Deserto é o terceiro livro desta série, depois de Quando a Guerra Fria Aqueceu e Terra e Sangue. São nítidas as qualidades narrativas: os diálogos, fluentes, rápidos e vivos, quando existem; e quando tal não sucede, a concepção das vinhetas, com recurso a vários planos (veja-se a operação militar, a páginas 26-28), alcança um bom dinamismo – um dos aspectos mais fortes desta BD, em que é visível o gosto de contar uma história original com vivacidade.
Ermal – Sementes no Deserto
texto e desenhos: Miguel Santos
edição: Escorpião Azul, 2019

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