quarta-feira, 28 de abril de 2021

antropomorfismos

 


Animais com características humanas foram sempre característicos da BD, neste caso herdeira das fábulas de antanho. Uma nova parelha de personagens da floresta, uma raposa e um texugo, falam sobre os problemas que os afligem, do aquecimento global ao confinamento... Renar et Blerô, texto e desenhos de Serge Scotto, edição Mosquito, Saint-Égrève, 2021.

«Leitor de BD»

segunda-feira, 26 de abril de 2021

ah, o Vaticano...

 



E um grande ah!, ainda para o Papado... Que edifício sumptuoso de heroicidade, grandeza e até santidade, mesmo que ciclicamente conspurcado pela baixeza humana! Aliás, Pedro Apóstolo, o primeiro papa, continha em si essa contradição, pois não renegou ele Jesus Cristo? De seita perseguida a igreja tolerada e a religião oficial do Império Romano, com Teodósio, em 380; do governo da Cristandade, em que destronava reis (D. Sancho II foi um deles), às humilhações de Napoleão; da grandeza dum Gregório VII à vileza dum Alexandre VI, o Papado, fez do seu aggiornamento político, com a criação do Estado do Vaticano, em 1929, outro prodígio no concerto das nações, digno dos últimos dois milénios de história, pensamento e arte. Nanoestado, trata-se de um dos mais interessantes paradoxos da política internacional. Os seus 0,44km2 não impedem, por exemplo, uma firmeza polida para com a China, em questões consideradas vitais para ambas as entidades; e veja-se a influência de um místico como João Paulo II no âmbito da Guerra Fria, em contraste com a impotência de Bento XVI, um intelectual brilhante, no meio daquelas facções de inimizade jurada; ou agora a grande onda de cristianismo do mais verdadeiro, levantada por um homem idoso e de saúde débil como o Papa Francisco.

Em dois álbuns, cuja acção decorre sob a égide desse estado minúsculo, em latitudes tão diversas como Malta, a Síria, o Líbano e a estância cosmopolita e argentária de Davos, na Suíça, este semana lemos O Guardião – Agente Secreto do Vaticano, argumento de Yves Sente (nos últimos meses falámos dele, a propósito de Mademoiselle J. – um mimo – e de XIII) e desenhos de François Boucq (também na semana passada assinalámos o seu trabalho na cobertura desenhada do julgamento dos implicados no atentado ao Charlie Hebdo).

Vince pertence à força de segurança que protege os membros do departamento de antiguidades arqueológicas da Santa Sé. A proficiência que demonstrou alcandorou-o a um patamar superior: o de guardião, um dos 12 espalhados pelo mundo com a missão de proteger a Igreja e cujas identidades são desconhecidas entre si. Aliás é esta opacidade, em que ninguém sabe bem quem é quem e o que realmente representa cada um, a começar nas personagens e a acabar no leitor, que faz o encanto deste thriller sobre uma conspiração de alto coturno, no centro de uma crise política internacional, envolvendo os Estados Unidos e o Irão, aproveitando a volatilidade dos mercados bolsistas internacionais, e incluindo ainda altos dignitários do Vaticano. A somar às encruzilhadas políticas, bolsistas e mafiosas, Sente reserva ainda um lugar para o sobrenatural, levemente, para não enjoar e danificar o plot com parvoíces. Boucq, apesar de ser um dos mais destacados desenhadores da actualidade, preferimo-lo num registo mais humorístico, como o do seu Jerôme Moucherot, agente de seguros na selva humana; no entanto, o resultado final surge sem objecções.


O Guardião

tomo 1 – O Anjo de Malta

tomo 2 – Fim-de-Semana em Davos

texto: Yves Sente

desenhos: François Boucq

edição: Gradiva, Lisboa, 2020

«Leitor de BD»


sexta-feira, 23 de abril de 2021

humor feminista

 


Por que razão há tão poucas mulheres nos livros de História? Ou porque parece que tudo começa e acaba com a Madame Curie, ou quase? A resposta é simples, e encontramo-la na primeira página: «Nos Velhos Tempos não havia mulheres. É por isso que você não ouvia falar delas nas aulas de História da escola. Só havia homens, e muitos deles eram gênios.» Uma sátira deliciosamente feminista, em que não escapam os grandes misóginos e machistas, de Schopenhauer a Picasso,. Edição em português pela L&PM, de Porto Alegre: Jacky Fleming, Qual o Problema das Mulheres?

«Leitor de BD»


quarta-feira, 21 de abril de 2021

a fada assassina

 


Quando uma jovem mulher, de aparência calma e normal, é presa sob a acusação de assassínio, para estupefacção do marido, através do diálogo com o advogado desvela-se a história de duas irmãs gémeas que cresceram num ambiente de ausência paterna e uma mãe pesadíssima, na neurose e no destrate. Um thriller assinado pelo casal Sylvie Roge (argumento) e Olivier Gresson (desenhos). Edição Le Lombard, Bruxelas, 2021.

«Leitor de BD»

segunda-feira, 19 de abril de 2021

tropelias no lar

 


Anatole é um velhote que, desde que chegou ao lar, já lá vão 15 anos, põe a cabeça em água aos funcionários e colegas de asilo; até que aparece Léontine, mostrando àquele reguila da terceira idade quem de facto manda ali. Humor dos tempos de agora, em edição da belga Kennes, por Stéphane Lapuss (texto) e desenhos de Julien Flamand, Anatole et Léontine – Suspends Ton Vol.

«Leitor de BD»

domingo, 18 de abril de 2021

como se «Os Sobrinhos do Capitão» fizessem BD...



George e Harold tornaram-se melhores amigos no infantário. Um gostava de escrever, o outro de desenhar; e foi assim que criaram as histórias protagonizadas pelo Homem-Cão, para desgosto da Professora Construde, que detestava que as crianças perdessem tempo com comics. Mas o impulso para engendrar situações divertidas falava mais alto; além disso, segundo os próprios, não faziam histórias aos quadradinhos, mas romances gráficos, autoeditados na colecção “Contos Casa na Árvore”.

Acontece que os criadores são também elas criaturas de Dav Pilkey (Cleveland, 1966), o autor do Capitão Cuecas, que nos oferece histórias de imaginação desembestada e ultrafantasiosa, embora baseadas em experiência antiga de uma qualquer professora Construde... Quando o agente Knight e o cão polícia Greg são alvos de um atentado perpetrado pelo perverso gato Petey, e o médico no hospital verifica que a cabeça do homem e o corpo do cão estão inaproveitáveis, a “senhora enfermeira” larga um eureka que irá modificar para sempre a BD de polícias e ladrões, por todo o vasto mundo: cosendo-se a cabeça de um ao corpo do outro, dá-se a ocorrência de uma híbrida criatura fardada, que não fala, pois é cão, mas de vez em quando tem epifanias, deslindando casos, para desgosto dos criminosos, em especial Petey.

Enquadrado nos livros para crianças e recomendado pelo Plano Nacional de Leitura, o Homem-Cão é uma boa mistura de um humor à Bill Watterson (Calvin & Hobbes) ou até Charles Schulz (Peanuts), aliás aqui homenageado com uma citação – o Homem-Cão deitado a ler no cimo de uma casota, na conhecida posição de Snoopy –, com reminiscências anteriores, que recuam à absurdez de Pat Sulivan e Otto Messmer (o Gato Félix) ou de um Tex Avery (Pernalonga / Bugs Bunny e um longo etecetera). Se as crianças são um público-alvo natural, os paizinhos ou os avós que se nutriram na infância de historietas em forma de assim não darão o tempo por mal empregue se lhe pegarem, ou acompanharem os mais novos na leitura. A opção por um traço característico de um miúdo de cinco anos funciona maravilhosamente, até porque as histórias de George e Harold nunca cessam de surpreender-nos, pela forma ingénua com que as crianças vêem o mundo dos adultos. Nada ingénuo foi Dave Pilkey ao pôr-se na cabeça e no lápis destas figuras que inventou.

Com um prólogo e quatro narrativas, talvez a mais saborosa seja “Livra-nos Homem-Cão!”, em que Petey, criminoso de gadgets, encomenda uma tinta especial que apaga as letras dos livros, uma vez que o esperto homem-cão gosta de ler e a leitura será a razão por que no fim leva sempre a melhor sobre o gato. Para combater esse obstáculo à sua vida de crime, o gato chega à conclusão que se não houver mais livros para ler, as pessoas ficarão burras. Numa espécie de toque de Midas invertido, a burrice dos concidadãos torna-se de tal maneira avassaladora, que Petey acaba por tornar-se a primeira vítima e sendo, mais uma vez, detido pelo pulguento e peculiar polícia.


Homem-Cão

texto e desenhos: Dav Pilkey

edição: Marcador, 2.º edição, Lisboa, 2020

«Leitor de BD»

quinta-feira, 15 de abril de 2021

os insultos doutros capitão

 


Sabe o que é um zuavo?, um ectoplasma? e tchuc-thcuk nougat, também não? Estes e mais doestos do irascível Capitão Haddock numa nova edição do breviário Les Jurons du Capitaine, de Albert Algoud, tintinólogo, humorista e especialista em calão de marinheiros. Casterman, Tournai, 2020.

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terça-feira, 13 de abril de 2021

«Charlie Hebdo»

 



Depois do massacre, em nome de Deus, perpetrado na redacção do jornal satírico Charlie Hebdo e noutras zonas de Paris, ocorrido em Janeiro de 2015, o processo que decorre confronta a sociedade francesa. Para a posteridade, o escritor Yannick Haenel e o desenhador François Boucq reportaram o que se passa em tribunal, numa experiência intensa e densa. Janvier 2015: Le Procésedição Charlie Hebdo / Les Échapés, Paris, 2021.

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domingo, 11 de abril de 2021

o vírus

 

Coisa estranha, esta pandemia, que nem uma bica nos deixa beber ou os pais beijar. Organismo invisível a olho nu, que põe o planeta em polvorosa, arruína vidas, negócios, expectativas. Valott, cartoonista suíço de mão-cheia, explora essa estranheza pelo humor. Terrien, T'es Rien, edição Favre, Lausana, 2020.

«Leitor de BD»


quinta-feira, 8 de abril de 2021

uma troca de vogais


 


Ao contrário da literatura e do cinema, o tópico da emigração não tem particular relevo na BD. E no entanto, como fenómeno humano, ela está pejada de situações conflituais romanescas inesgotáveis, Num dos grandes romances portugueses do século XX, Emigrantes (1928), de Ferreira de Castro, há uma cena decisiva sobre a angústia do desterro voluntário, quando o rebanho vindo de vários pontos do território e já a bordo do barco que os leva ao Brasil, vê Lisboa a afastar-se, talvez até nunca mais: “eles sentiam, instintivamente, a ligação, nunca até ali compreendida, das aldeias em que nasceram com a cidade que se ia esfumando à popa do navio, entre céu e azul. E contemplavam-na, emocionados, vencidos pelo coração, como se nela se focassem os panoramas nativos, com as suas figuras e a sua saudade.”

A história de hoje fala-nos de Tonio, um jovem aldeão siciliano, afável, inteligente e bem-parecido, atingido pelo defeito congénito de um pé boto. No velório do avô, Ripponi, o proprietário para quem toda a família trabalha, decide atribuir-se a generosidade de custear metade da viagem do jovem para a América, devendo o resto da aldeia quotizar-se para o resto. Nada foi feito por desinteresse, sentimento que ao bicho-homem raro assiste, mas os desenvolvimentos, só nos tomos seguintes conheceremos.

Ellis Island, foi o histórico centro de acolhimento, fiscalização, internamento e por vezes devolução dos recém-chegados à América, terra do leite e do mel no imaginário dos pobres da Europa, e ainda hoje dos deserdados do mundo. Tonio deixara para trás a aldeia, a família e um amor inesperado. Ao largo de Manhattan, muda de vogais e de condição: passa agora a imigrante, e ao desconforto do que lhe é ignoto. À terceira prancha vemos o convés pejado da gente da terceira classe (título de um belo livro de José Rodrigues Miguéis) e os comentários desdenhosos atirados de cima pelos da primeira. Uma maravilhosa algaraviada do lumpen europeu, cujo olhar irradia esperançada expectativa, seja gaiato ou velho quase de pés para a cova. No interior, Tonio fez amizade com Giuseppe, italiano do norte, desempoeirado e expansivo. Os viajantes da primeira e segunda classes eram dispensados dos procedimentos, desembarcavam directamente em Nova Iorque. Neste confronto do rebanho com os burocratas de fronteira pela oportunidade de um lugar ao sol, entre a indiferença e a crueldade, com vária escória humana à mistura, o argumento de Philippe Charlot (autor da série O Comboio dos Órfãos, edição Arcádia) é particularmente conseguido no rastreio das misérias e grandezas humanas. O desenho aguarelado do polaco Miras, o tratamento das fisionomias, lembrando François Boucq, e a disposição das vinhetas potenciam o trabalho de Charlot.

Na última vinheta, olhando para Manhattan, depois de mais uma prova posta ao seu humanismo, Tonio pergunta(-se): “Em que nos estaremos a tornar, Giuseppe?” E a resposta não tarda: “Em americanos, Tonio, em sacanas de americanos.”


Ellis Island – 1. Bienvenu en Amérique!

Texto: Philippe Charlot

Desenhos: Miras

edição: Grand Angle, Charnay Les Mâcon, 2020.

«Leitor de BD»

domingo, 4 de abril de 2021

'erotica'

 


Jean-David Morvan (Reims, 1969), outro dos mais destacados argumentistas de BD, é um apaixonado pelo Extremo Oriente. O leitor português pode verificá-lo em Spirou e Fantásio em Tóquio (Asa) e Mao Tsé-Tung (Gradiva). Em Gaijin, com desenhos de Damien Henceval, temos uma BD erótica, género que tem conhecido um aumento de procura em tempo de confinamento. Manami é uma estudante japonesa que tem um fetiche por estrangeiros – gaijin, em japonês. O encontro com um estudante francês, a quem convida para passar a noite, será o primeiro em que concretizará as suas fantasias. Edição Glénat, Grenoble, 2021.

«Leitor de BD»

Guerra da Secessão


 

O general Robert E. Lee dizia que era positivo a guerra ser uma coisa terrível, caso contrário ainda lhe tomaríamos o gosto.... Nas adjacências do género western, a Guerra Civil Americana, pelas implicações e sequelas que deixou até aos nossos dias, pela violência até então inaudita e por ter sido o primeiro grande conflito a ter cobertura mediática ampla, nunca deixou de intrigar. A frase de Lee serve de epígrafe a mais uma série, Ennemis, texto de Kid Toussaint e desenhos de Tristan Josse, como sucede nestas circunstâncias heroísmo e insanidade vêm a par. Tomo I: Noir, edição Grand Angle, Charnay Les Mâcon, 20121.

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