segunda-feira, 26 de abril de 2021

ah, o Vaticano...

 



E um grande ah!, ainda para o Papado... Que edifício sumptuoso de heroicidade, grandeza e até santidade, mesmo que ciclicamente conspurcado pela baixeza humana! Aliás, Pedro Apóstolo, o primeiro papa, continha em si essa contradição, pois não renegou ele Jesus Cristo? De seita perseguida a igreja tolerada e a religião oficial do Império Romano, com Teodósio, em 380; do governo da Cristandade, em que destronava reis (D. Sancho II foi um deles), às humilhações de Napoleão; da grandeza dum Gregório VII à vileza dum Alexandre VI, o Papado, fez do seu aggiornamento político, com a criação do Estado do Vaticano, em 1929, outro prodígio no concerto das nações, digno dos últimos dois milénios de história, pensamento e arte. Nanoestado, trata-se de um dos mais interessantes paradoxos da política internacional. Os seus 0,44km2 não impedem, por exemplo, uma firmeza polida para com a China, em questões consideradas vitais para ambas as entidades; e veja-se a influência de um místico como João Paulo II no âmbito da Guerra Fria, em contraste com a impotência de Bento XVI, um intelectual brilhante, no meio daquelas facções de inimizade jurada; ou agora a grande onda de cristianismo do mais verdadeiro, levantada por um homem idoso e de saúde débil como o Papa Francisco.

Em dois álbuns, cuja acção decorre sob a égide desse estado minúsculo, em latitudes tão diversas como Malta, a Síria, o Líbano e a estância cosmopolita e argentária de Davos, na Suíça, este semana lemos O Guardião – Agente Secreto do Vaticano, argumento de Yves Sente (nos últimos meses falámos dele, a propósito de Mademoiselle J. – um mimo – e de XIII) e desenhos de François Boucq (também na semana passada assinalámos o seu trabalho na cobertura desenhada do julgamento dos implicados no atentado ao Charlie Hebdo).

Vince pertence à força de segurança que protege os membros do departamento de antiguidades arqueológicas da Santa Sé. A proficiência que demonstrou alcandorou-o a um patamar superior: o de guardião, um dos 12 espalhados pelo mundo com a missão de proteger a Igreja e cujas identidades são desconhecidas entre si. Aliás é esta opacidade, em que ninguém sabe bem quem é quem e o que realmente representa cada um, a começar nas personagens e a acabar no leitor, que faz o encanto deste thriller sobre uma conspiração de alto coturno, no centro de uma crise política internacional, envolvendo os Estados Unidos e o Irão, aproveitando a volatilidade dos mercados bolsistas internacionais, e incluindo ainda altos dignitários do Vaticano. A somar às encruzilhadas políticas, bolsistas e mafiosas, Sente reserva ainda um lugar para o sobrenatural, levemente, para não enjoar e danificar o plot com parvoíces. Boucq, apesar de ser um dos mais destacados desenhadores da actualidade, preferimo-lo num registo mais humorístico, como o do seu Jerôme Moucherot, agente de seguros na selva humana; no entanto, o resultado final surge sem objecções.


O Guardião

tomo 1 – O Anjo de Malta

tomo 2 – Fim-de-Semana em Davos

texto: Yves Sente

desenhos: François Boucq

edição: Gradiva, Lisboa, 2020

«Leitor de BD»


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