Pensar que em 1974 o país
estava num conflito militar com três frentes, perpetrando crimes de guerra em
nome de uma mentirola consubstanciada no slogan
“Portugal uno e indivisível, do Minho a Timor”, só não faz sorrir porque
muitas foram as vidas destruídas, portuguesas e africanas, em nome dessa
balela. No entanto, o tratamento dado aos ex-combatentes, que em nome deste
rudimento ideológico serviram de carne canhão, foi outra indignidade, aliás
muito portuguesa: varremos o que é incómodo para debaixo do tapete .
[Abre-se propositadamente um
parênteses sobre o debate em curso, a propósito da falsa questão dos
Descobrimentos: estes estão confinados aos séculos XIV e XVI; misturá-los com o
imperialismo do Euromundo é um anacronismo grosseiro e uma mistura de
conceitos. O século XV não é o século XIX.]
Mas há mais: africanos que
pegaram em armas contra os movimentos de libertação – e já estamos a entrar no
livro de hoje –, tiveram, muitos deles, um triste fim: Spínola, quando chega à
Guiné, em 1968, muda de táctica, envolvendo as populações e criando forças
africanas para combater o PAIGC, enquadradas pelas Forças Armadas – o velho
‘dividir para reinar’. Já era tarde, porém, tanto eticamente como do ponto de
vista estratégico e político, para os obstinados do Império, que aguardava
apenas uma rajada mais forte dos ventos da História para se escaqueirar.
BD que só sirva para dela
falar, não interessa, perdoe-se o lugar-comum. Filhos do Rato, de Luís Zhang (Lisboa, 1986) e Fábio Veras (Lisboa,
1997), é um óptimo exemplo do bom momento por que passa a BD portuguesa. Belo
texto (apesar de alguns anacronismos evitáveis…) para um dos dramas mais
pesados da nossa história recente. A acção decorre na Guiné em dois momentos –
Inverno de 1975, com um extenso flashback
para um período que antecede a independência, Verão de 1973 – e conta-nos da
amizade travada no mato por dois homens: Camões, um militar negro, e Joaquim,
soldado duma aldeia perdida em Trás-os-Montes, amizade que vai subsistir ainda
para além da morte. A certa altura da narrativa, uma ratazana é vista a comer
mantimentos no barracão do acampamento; atingida em cheio por uma lata de
conserva, foge e deixa no local embriões de ratos que serão esmagados, com
nojo. Uma metáfora para esses anos da guerra na Guiné: sabemos quem são os filhos do rato; e também o que
representa a ratazana. Para bom entendedor – é melhor confirmar pela leitura…
A opção da coexistência da
cor e do preto e branco na mesma prancha é muito interessante; e o desenho de
Fábio Veras, por vezes expressionista, passa ao papel, com o nervo intenso e
necessário, os momentos desesperantes do tédio de uma longa inacção na espera
do inimigo ou da ocorrência da emboscada, com a mata a ferro e fogo.
Sim, a BD é uma coisa séria.
Luís Zhang & Fábio Veras, Filhos do Rato
Edição: Comic Heart e G. Floy Studio, 2019
Edição: Comic Heart e G. Floy Studio, 2019
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