Outrora um dos maiores lagos do mundo,
situado entre o Cazaquistão e o Uzbequistão, o recuo do Mar de Aral é
considerado uma das maiores tragédias ecológicas da nossa época. Consequência
de políticas desenvolvimentistas erradas, para cuja concretização foram
desviados os seus rios afluentes, a região envolvente é hoje descrita pelos
autóctones como o deserto de Aral… É
neste cenário que José Carlos Fernandes (Loulé, 1964) e Roberto Gomes (Silves,
1983) desenvolvem, a primeira história deste álbum, que lhe dá também o título:
«Mar de Aral».
A capa é magnífica. Apresenta uma figura
misteriosamente suspensa na âncora de um navio, imagem cujo significado só
apreenderemos em todo o seu alcance depois de lida esta narrativa. As palavras
de José Carlos Fernandes ganham um encantamento poético à medida da desolação
que se nos depara: «O mar fugiu como um cavalo assustado. / O mar fugiu e
deixou atrás de si barcos ferrugentos, planícies de sal e aldeias piscatórias
encalhadas na areia.» Mas como estamos no domínio do fantástico, o argumento
desenvolve-se em torno dos estratagemas de sobrevivência dos peixes desse
habitat.
O desenho faz jus ao que a capa nos promete;
a disposição das vinhetas realça os grandes espaços de solidão e abandono
(notável a página dupla em que se representa a fímbria que une mar e deserto);
nas cores, predominam o castanho, o sépia e os tons arenosos, contrastantes com
as três pranchas finais, quando a acção passa a desenrolar-se numa viela
nocturna de cidade velha, nas proximidades, carregando de negro a atmosfera de
estranhamento que até aqui a narrativa nos transmitira.
É a mais extensa de cinco ficções inauditas,
e a que de longe se destaca, mas todas se recomendam: do tom paródico de «Um
boi sobre o telhado» e «Roupas de defunto», à melancolia de «A inauguração do
Canal do Panamá» e «A arte esquecida de nadar rio acima».
Para não destoar, as notas biográficas dos
autores participam da irrealidade geral: José Carlos Fernandes aparece
identificado como um misterioso cientista cuja vida decorreu entre 1891 e 1938.
Entusiasta da Revolução Russa de 1917, transfere-se para a pátria soviética,
alterando o nome para Osip Ernantzev. A acreditar no biografema, e para sermos
eufemísticos, não foi propriamente bem sucedido. Quanto a Roberto Gomes, é
apresentado ao leitor como um peixe do Mar de Aral, «que escapou por pouco a
ser transformado em suchi».
Mar de Aral
argumento:
José Carlos Fernandes
desenhos:
Roberto Gomes
G.
Floy Studio e Comic Heart, 2019
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