quarta-feira, 4 de março de 2020

«O RAIO U»

Muitos clássicos da BD mantêm o viço; outros têm um interesse eminentemente histórico, como é o caso do livro de hoje. Isto para dizer que, retomando o espírito inicial desta página, iremos conjugando novas e velhas leituras.
O Raio U marca a estreia nos quadradinhos de largo fôlego de Edgar Pierre Jacobs (1904-1987), na revista Bravo em 1943, pertence sobremaneira à categoria da obra que ficou nos anais, embora se situe uns bons furos abaixo da série que o consagrou, Blake e Mortimer.
A génese é conhecida: Jacobs, um homem da publicidade e da ilustração com uma paixão pela ópera – fora barítono, sem espectáculos na Bélgica ocupada – ingressara na revista Bravo, especializada nos comics americanos, com Flash Gordon no principal cartaz. Com a entrada dos Estados Unidos na guerra, o material deixa de chegar; e em pânico, o chefe-de-redacção pede a Jacobs para substituir o consagrado Alex Raymond. Na autobiografia, Un Opera de Papier – Les Mémoires de Blake et Mortimer (1981), revela que se sentiu lisonjeado, embora receoso, com o seu pastiche Gordon l’Intrépide, e também por isso nunca assinou a contrafacção, que tinha os dias contados: os alemães proibiram as historietas americanas e foi assim que surgiu O Raio U, ‘descaradamente’ inspirado no modelo americano, embora recorrendo já a filacteras, bem como antecipando alguns tópicos que irá retomar na série que o consagrou, e explorando também um imaginário que fora desenvolvido por autores como Júlio Verne, Conan Doyle ou H. G. Wells.
A história, cheia de peripécias, é contudo linear: uma missão num território remoto, em busca de um metal raro, necessário ao desenvolvimento de uma arma pelos cientistas da Nordlândia, ‘os bons’, tem um agente infiltrado da Austrádia, em trabalho de sabotagem. Os primeiros fazem as vezes dos britânicos e aliados, os outros são ‘os maus’, o que em 1943 só podia ter um significado preciso.
Vale a pena olhar a capa capa com atenção. Desde logo, a promessa de um turbilhão de aventuras; e, no canto superior esquerdo, um 'aeropilha', nave aérea que aponta, não inocentemente, para o nome do autor, E. P. Jacobs, o criador do 'espadão', fazendo-se desta forma a ligação à aventura inaugural de Blake & Mortimer, de todos conhecida.
O ritmo é realmente alucinante – nas últimas vinhetas ocorre uma batalha aérea... – e os jovens contemporâneos que liam a Bravo devem-no ter sentido. Greg, que assinou o prefácio, recordava: “toda uma geração de jovens leitores se agarrava a este O Raio U reluzente, para fugir, uma vez por semana, ao realismo cinzento e negro da Ocupação.” A mestria de folhetinista de Jacobs deixava os leitores em suspenso no último quadradinho de cada prancha, fazendo a rapaziada ansiar pelo número seguinte.
O Raio U
texto e desenhos: E. P. Jacobs
Livraria Bertrand, Amadora, 1978


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