sábado, 16 de janeiro de 2021

«O Mistério da Grande Pirâmide» (2)




A egiptologia foi pasto para o imaginário ocidental, da campanha militar de Napoleão à campanha arqueológica de Howard Carter, do espírito científico que deu Champollion às aldrabices ditas esotéricas, e de Hercule Poirot a Indiana Jones,

O Mistério da Grande Pirâmide de Jacobs mistura sabiamente os diversas aspectos deste fascínio, como deixa entrever Jacobs na autobiografia Un Opera de Papier – Les Mémoires de Blake et Mortimer (Gallimard, 1981). Assim, para além do lixo impresso em qualquer gazeta de baixa extracção, muniu-se dos autores clássicos, Heródoto, Estrabão, Abdalatife de Bagdade, e dos modernos como Maspero, citado no texto, ou Mariette – “o amigo íntimo de todas as múmias”, como lhe chamou Eça de Queirós, que com ele se cruzou na Ópera do Cairo, em 1869, onde estava para assistir à inauguração do Canal de Suez. (Para registo: Mortimer passa pelo mesmo hotel em que Eça se hospedou, o Shepheard, mas não consta que o cientista conhecesse a obra do escritor português, o drama dos países periféricos...).

O plot de O Mistério da Grande Pirâmide é pois condimentado com tudo isto: arqueologia (Mortimer em férias, encontra-se com o seu amigo, o Prof. Ahmed, director do Museu do Cairo), o romanesco policial (Olrik surge como testa de uma bem organizada rede de tráfico de antiguidades egípcias) e o mistério: um compartimento secreto até então inviolado, a “Câmara de Hórus”, que esconderia o tesouro e o legado de Aquenáton.

Amenófis IV, faraó da XVII Dinastia, reinando entre 1370 e 1357 a.C. operou uma revolução religiosa no Egipto faraónico: o culto monoteísta de Áton, o deus sol, alterando o nome para Aquenáton, o filho ou o instrumento de Aton, bizarria que a classe sacerdotal não iria deixar passar incólume, assim que o faraó herético fosse prestar contas ao Criador – e, na verdade, o povo também não aderiu a esta mudança. Há quem procure explicar tal desvio pela provável ascendência semita de Aquenáton; as feições do rei, podemos constatá-lo, são assaz peculiares dentro do fenótipo egípcio e a verdade é que a presença hebraica no país é histórica, não apenas pelos contactos comerciais como também pelo domínio dos Hicsos, povo semita, cerca de dois séculos antes. Além disso, mais espicaça a nossa curiosidade a circunstância de a mulher de Aquenáton ser Nefertiti, a mais bela das egípcias antes de Cleópatra, como nos revela o busto no Museu de Berlim, e as tocantes manifestações de afecto entre o casal que chegaram até nós.

Blake e Mortimer, depois de Olrik, terão acesso a essa câmara guardada desde então por descendentes do escriba do faraó, Paatenemheb, o último dos quais aparece na capa do segundo tomo. Será a escolha deste controverso faraó como mola da narrativa, que, quanto a nós, dará a esta aventura de Blake e Mortimer o plus que ainda hoje, passados setenta anos da sua estreia numa revista juvenil, mantém o interesse acrescido numa das grandes séries da BD mundial.


O Mistério da Grande Pirâmide,

Vol. 2. A Câmara de Hórus

texto e desenhos: Edgar P. Jacobs

edição: Livraria Bertrand, Venda Nova, 1982


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