quarta-feira, 13 de novembro de 2019

um duro coração de manteiga


Na vinheta inicial, sob um sol de canícula, um abutre de longas asas estendidas voa com a cabeça inclinada para o solo; a seguir, em grande plano, vemo-lo a fixar o olhar em algo; depois, a carcaça de um cavalo sendo devorada por um bando de aves; no quarto quadradinho, com o mosquedo a voltear, a carniça é arrancada pelos fortes bicos concebidos para retalhar. A partir da segunda vinheta, filacteras sem o apêndice característico transmitem-nos as reflexões de alguém: «As pessoas não gostam de nós. / Há quem diga que é porque passamos o nosso tempo no meio de cadáveres. / Transmitimos a morte como outros transmitem bexigas. / Também consta que cheiramos mal e que podemos dar azar. / Vá-se lá saber onde foram buscar isso! / A verdade é que as pessoas não gostam de nós. / E ainda bem.» Quinta e última vinheta da primeira prancha: um homem ainda novo, de barba cerrada, vestido de escuro, sentado de caneca na mão e cigarrilha na boca, encostado à carreta que lhe pertence, completa agora o seu pensamento: «Também não gosto delas.» É Jonas Crow – um gato-pingado, um cangalheiro – o herói desta série. Acompanham-no “Jed”, um abutre de asa embriada que Jonas não teve coragem de matar, e os dois cavalos da carroça funerária: “Zephyr” e “Cobalt”.
Pela amostra deste primeiro álbum, publicado originalmente pela Dargaud Benelux, em 2015, a saga de Jonas Crow tem tudo, autores e assunto, para vingar. O texto é de Xavier Dorison e o desenho de Ralph Meyer, ambos parisienses de 1971. O primeiro é argumentista exímio (O Terceiro Testamento, sequelas de XIII e Thorgal); Meyer, tem um lápis ágil e espectacular, além de abundantes recursos expressivos. Diga-se, a propósito, que a semelhança fisionómica com Mike T. Blueberry é, mais do que intencional; é um elo que os autores criam – por razões que nesta fase não são claras – à melhor BD western. A cada um a possibilidade de especular...
Crow é uma personagem, é a personagem: solitário, misterioso (transporta uma história consigo), de mão leve com a artilharia e raiva interior que o tornam temível, além de um coração de manteiga, capaz dos gestos mais altruístas – e também divertidos, como aquela citação da “Epístola de São Paulo aos Californianos”… Se o Duke, de Hermann e Yves H., de quem já aqui falámos, é um pistoleiro que não gosta de armas, Jonas Crow é uma máquina de matar que odeia violência... Aliás, o que não falta é um conjunto de personagens fortes, que tornam este western intenso e áspero, embora a violência não seja gratuita, antes uma exigência da própria trama, dotada destas personagens específicas: um antigo garimpeiro às portas da morte, dono duma cidade, ganancioso e cruel, uma jovem governanta inglesa hierática e sensual, um criado de casa ressentido, uma velha chinesa perspicaz, um xerife venal, e por aí fora, em intriga estonteante.
Undertaker – 1. O Devorador de Ouro
argumento: Xavier Dorison
desenhos: Ralph Meyer
cor: R. Meyer e Caroline Delabie
edição: Ala dos Livros, Benavente, 2019

2 comentários:

  1. Olá, Ricardo! Bom artigo. A ressaltar que o abutre Jed remonta ao pássado Deepo, companheiro de John Difool em "O Incal" de Alejando Jodorowsky e Moebius, o outro eu artístico de Jean Giraud, criador gráfico do Tenente Blueberry, cuja série é uma das inspirações para "Undertaker" conforme palavras dos seus criadores, Xavier Dorison e Ralph Meyer. A editora Ala dos Livros publicou igualmente os volumes 2 e 3 das aventuras do coveiros e seus amigos. Saudações desde Manaus, Amazonas, Brasil.
    Afrânio Braga, criador do blogue Blueberry, uma lenda do Oeste, https://blueberrybr.blogspot.com/

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    1. Caro Afrânio, obrigado, e também pelo que diz sobre o Jed. Claro, não me ocorreu, mas é uma evidente e esplêndida homenagem, como evidente é o tom blueberryano. Não tenho ideia de ter lido a entrevista.
      Um abraço

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