quarta-feira, 6 de novembro de 2019

resistir é vencer

Valério, arquitecto de meia-idade, passeia pelas ruas com um carrinho-de-mão carregado de tijolos. Em flashback, ficamos a saber que quando a Troika se instalou, a oficina de arquitectura onde trabalhava fechou portas, solidária à força com o empobrecimento geral do país, pobreza em que caíramos por entre esquemas de variegada proveniência, políticas de sentido único e prestidigitações financeiras. Nas mãos dos mercados, esse Shazam! da modernidade dos povos talhados para as alegrias do 5G, foi um ver-se-te-avias na degradação do nosso viver habitualmente. Os portugueses medianos, ingeridos sem esforço, tornaram-se bons nutrientes para a comilança da banca e a veniaga partidária; os pobrezinhos e sobrantes, alavancaram o elevador espiritual de muito bom praticante de banco alimentar, cujo Céu certamente foi ganho.
O desempregado Valério resolve então recuperar a casa que lhe ficara dos avós que, com espanto e indignação, descobre ocupada por gente sem-abrigo & outros desqualificados. Porém, à síncope que então o acometeu, seguida de internamento, sobreveio um outro olhar sobre o real, e tudo deixaria de ser como fora até aí: Valério passa a prestar atenção aos outros – «construir para resistir» torna-se uma divisa. E deste modo pretendeu edificar uma outra realidade, diferente da liquefação contemporânea sem horizontes para muitos, nem tecto ou chão, como se de um novo ajustamento se tratasse, desta vez o da decência, à margem da mercantilização da cidade e de quem nela vive.
Os portugueses, e os lisboetas em particular, passaram agora a andar ditosos com a procura turística. Não há cidade que aguente ou aeroporto que chegue para tanta oportunidade de fazer dinheiro Pelo meio desta “avidez da ganhuça” – para citar o escritor anarquista Assis Esperança (1892-1975) –, haverá sempre tipos estranhos que recolhem tijolos, para desdém dos empreendedores e desgosto dos presumíveis herdeiros.
Com uma composição dinâmica de cada prancha, em que a vinheta tradicional está implícita ou simplesmente não existe, a benefício da fluidez narrativa, Pedro Burgos (Lisboa, 1968), ilustrador e arquitecto que “gosta de desenhar histórias aos quadradinhos sem quadradinhos”, como reza a contracapa, dá-nos em O Coleccionador de Tijolos uma parábola dos tempos que correm.
A leitura lembrou-nos por vezes o Will Eisner do The Building, de que já falámos; outras, a poética do franco-grego Fred, criador do maravilhoso Philémon. A edição é cuidada, com atenção aos pormenores (por exemplo, a analepse impressa em papel doutra cor). Mestria na composição, solidez de ponto de vista, que não nos deixa indiferentes, humor e amor em doses comedidas – o que mais se pode querer de uma BD?
O Coleccionador de Tijolos
argumento e desenhos de Pedro Burgos
edição: Chili com Carne, Cascais, 2019


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