sexta-feira, 5 de junho de 2020

um homem escalavrado

A leitura é também um processo físico, e nada substitui o prazer de ter um livro nas mãos e folheá-lo, nem sequer as revistas, que são outro tipo de regalo. Já a web, com todas as vantagens quanto à disseminação de material, falta-lhe o vinco da matéria impressa, o cheiro a papel e a tinta, se tivermos sorte. Um álbum em formato clássico de BD franco-belga, produzido na origem, com a chancela portuguesa da Arte de Autor, dá-nos aquela boa sensação. E com a pandemia, as opções têm sido escassas...
Comecemos pela capa, ampla, imagem aberta e essencial como o cenário de que se compõe. O Colorado, nos finais da década de 1860, um território que não ascendera ainda à dignidade estadual e cujo nome tipifica o lugar-comum do oeste selvagem, de terras sem lei nem ordem. Os áridos maciços pedregosos das Rocky Mountains, cujo tom terroso e barrento contrasta com a chapada de azul celeste, impõe-se à imagem do cowboy e montada postados à direita, em primeiro plano. Enquanto que, no canto superior esquerdo, entre o nome dos autores – Hermann e Yves H. – e o título deste episódio – A Última Vez que Rezei – o lettering que compõe o nome-alcunha do protagonista – Duke – apresenta os caracteres gastos, corrompidos, um borrão com salpicos de tinta caindo da letra inicial, como se um esguicho de sangue negro se tratasse, transmitindo a condição do herói, a de um homem escalavrado, como a paisagem que percorre com o olhar. Hermann a anunciar a mestria do desenho, os fundos aguarelados, a eficácia dos enquadramentos.
Neste quarto álbum, Duke, que vinha descobrindo-se pistoleiro contra a própria vontade, parece ter-se rendido ao fatum nefasto que o assombra, vindo dos tempos remotos duma infância que vamos entrevendo pelas informações que o texto nos vai dando; através diálogos evocativos ou recurso ao flasback, revela uma orfandade precoce que não foi acomodada da melhor maneira. Nas palavras do protagonista: “Abandonados por Deus, era inevitável que o Diabo se interessasse por nós...” O passado é algo de que não se pode fugir.
O modo de desvelamento, que o argumentista, Yves H., vai soltando com eficácia, ocorre à medida das muitas peripécias de que o álbum está recheado: perseguição infrene (há um cofre recheado que foi objecto de um assalto no álbum anterior, de que já aqui se falou), o rapto de Peg, a prostituta que é o amor adiado de Duke, a sua captura, um espectro que o persegue espalhando a morte em redor mas poupando-o sempre. Em suma, uma sucessão de acções violentas, em que Duke é quase sempre um agente passivo, em resposta defensiva. Até quando?
Atentemos nos nomes dos quatro álbuns: A Lama e o sangue, Aquele que Mata, Sou uma Sombra e A Última Vez que Rezei. O título do quinto tomo, em que Hermann está a trabalhar em bom ritmo, já se conhece: Serás um Pistoleiro, e poderá responder àquela pergunta.

Duke – A Última Vez que Rezei
texto: Yves H.
desenhos: Hermann
edição: Arte de Autor, Estoril, 2020.


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