quarta-feira, 17 de junho de 2020

sobre o mal

Umbra”, palavra latina para “sombra”, traz consigo todos os transtornos: os segredos inconfessáveis, a clausura, a morte. Digamos então que Umbra é uma publicação de banda desenhada sobre a persistência do mal, em nós e nos outros – e que bem ele se nos apresenta: predação, conspirações, ganância, parafilias, abusos, de tudo há nestas cinco-estórias-cinco de BD em português. Uma cabeça de ursinho Rupert, na capa magnificamente umbrosa, diz tudo.

Estrada da Coca-Cola, de João Chambel (texto) e João Sequeira (desenhos), fábula pós-nuclear em que impera o mutismo e o isolamento. Um casal habitando uma roulote à beira duma via deserta, em que por vezes circulam presas e predadores, desespera por encontrar mais gente, mas os sinais de desumanidade são demasiados para um final feliz. O preto e branco de João Sequeira serve esta narrativa porosa em que a escuridão predomina.

Óscar, sigla de mensagem de radioamador – ‘o chat dos anos setenta’ – e alcunha da personagem desta história, com argumento de Pedro Moura e desenhos de Filipe Abranches. Contactado na banca da arrecadação, onde tentava arrumar tralha antiga, por um amigo desse tempo, desaparecido havia muito. Óscar percebe que aquele que agora lhe surge do nada, inesperadamente, como se engolido e materializado em frequências electromagnéticas. Óscar empreendeu o registo dessa voz que lhe vinha de outras bandas; porém, o homem põe e há sempre alguém a dispor...

Herbicida, também de Pedro Moura e desenhos de Sérgio Sequeira, estica até ao horror as consequência da manipulação genética no reino vegetal. O estilo manga de Sequeira enquadra na perfeição o argumento. Das cinco, é a única narrativa que não se afunda no pessimismo.

Carne, de José Carlos Joaquim, Pedro Moura e Hugo Maciel, traz-nos um loquaz psicopata esquartejador de mulheres. Tudo correcto, mas talvez pelo tema batido, foi a que menos nos agradou. No entanto, uma bela subversão daquele verso de Camões, “Transforma-se o amador na cousa amada”...

Finalmente, Zodíaco, do brasileiro (Eduardo Filipe) Sama, é uma feliz combinação de sobrenatural e atmosfera negra, por onde vagueia um jornalista despromovido para secção do horóscopo. Há o patrão e a mulher dele, ou cá se fazem, cá se pagam – ou não?

Para revista falta à Umbra um pouco mais – e não é só o índice inexistente. Um editorial a dizer ao que vem, não estaria mal; umas notas sobre os autores, também não; e se se quer ser revista, há que rever, um artigo outro não era mal pensado. Falta tudo isso, e é pena. Esperemos que o n.º 2 possa colmatar estas lacunas, até porque quando se fizer um balanço das revistas de BD numa qualquer data redonda deste século, a Umbra terá de lá estar.

Umbra #1
Vário autores
edição: Umbra Edições, Outubro 2019


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