domingo, 28 de junho de 2020

Dick Tracy


O imaginário gangster, que nos foi aportado pela literatura e pelo cinema, está muito longe de exercer o mesmo fascínio que o western, esse sim, o grande contributo da América do Norte para a narrativa humana global, desde que descemos das árvores.
No que respeita aos comics a primazia deve-se a Chester Gould (1900-1985) e ao detective policial que criou, Dick Tracy. Surgido em dois jornais, em Nova Iorque e Detroit, em 1931, em pleno vigor da “Lei Seca”, à sombra da qual medrou o crime organizado, com o seu cortejo de horrores, disposição legal que viria a ser revogada na presidência de Franklin D. Rossevelt, um dos grandes presidentes da história dos Estados Unidos.
A diferença de Dick Tracy relativamente a recriações recentes como o magnífico Torpedo, de Enrique Sánchez Abuli e Jordi Bernett, reside na circunstância de este se tratar de uma recriação, com a justaposição da pátina que o tempo histórico lhe deu, ao passo que Dick Tracy evoluía durante o calor dos acontecimentos. Talvez por isso a violência e a crueza que por vezes é apontada à série se explique por essa contiguidade com o crime, trazido em manchetes pelo mesmo jornal que publicava Dick Tracy, em tiras diária e páginas dominicais. Acresce à verosimilhança da violência o atractivo dos gadgets a que o detective lançava mão e à prática científica forense apresentada de forma meticulosa, pois o próprio Chester Gould tirara vários cursos para documentar-se.
Mas o principal trunfo de Dick Tracy deve-se, quanto a nós, à mestria narrativa do autor, com uma influência do cinema, nomeadamente nas elipses e cortes de planos. Gould possuía uma mestria narrativa que prendia a atenção do leitor. Neste mesmo livrinho, por exemplo, numa única tira, com apenas três vinhetas – dando sequência à do dia anterior e procurando interessar o leitor pela continuação no dia seguinte – cada quadrinho corresponde a lugares diferentes da história: o espaço da vítima, o dos criminosos e a esquadra de polícia (cfr. tira central da página 27).
O Caso 3-D, a história desta edição, datada de 1957, é um vulgar episódio de extorsão, muito bem contado. Cabeça de Lata, a personagem central, magnata do petróleo, detentor de uma fortuna colossal e vários casamentos, decide visitar um dos sete irmãos, após 30 anos de ausência. Este é BO Plenty (Farfalha, na tradução brasileira), um hillbilly – ou seja, uma dessas figuras rústicas, que vivem em clã nas zonas montanhosas da América do Norte, celebrizados também pelos comics e pelo cinema – e a cuja família, em particular às jovens sobrinhas, quer presentear com uma modelar casa de banho... Este Farfalha, ex-criminoso tornado amigo de Tracy, foi um elemento de contraponto humorístico, para suavizar a violência negra do argumento. Ao mesmo tempo, Poly, ex-mulher de Cabeça de Lata e gananciosa, mancomunado com o amante, 3-D Magee, não olham a meios para extorquirem o possível ao velho tycoon. No fim, é fatal, o bem triunfa sobre o mal. Rima e tomara fosse verdade.

Dick Tracy -- O Caso 3-D
argumento e desenhos: Chester Gould
edição: Rio Gráfica Editora, Rio ded Janeiro, 1981


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