domingo, 30 de janeiro de 2022

de A a Z: O, de Olivier Rameau (Dany & Greg, 1970)



Um jovem ajudante de notário do Mundo-onde-todos-se-aborrecem, embarca com um colega à beira da reforma, Alphonse Pertinent, num eléctrico que conduz a um estranho país. Em Rêverose, não há pressas nem dinheiro, e até os espantalhos são amigos dos pássaros. Além disso, há também a menina Colombe, esplendorosa, por quem Olivier Rameau se apaixona. Um paraíso, que só é ameaçado quando alguém deste mundo em que nos aborrecemos lá vai parar. Uma grata fantasia utópica que ainda não disse tudo.

«Leitor de BD«

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

cidadão Talon


De indumentária fora de moda, a que não falta chapéu, laço-borboleta e bengala, conduzindo um Achilles modelo1908, ventrudo, careca e com um nariz fenomenal, Achille Talon é o que se chama um cromo, características que herdou do pai, apesar de tudo mais distendido e grande bebedor de cerveja. Quando vê um antigo colega, é incapaz de dizer “Há quanto tempo!”. Um cumprimento para esta personagem consiste sempre num pequeno tratado: “Meu velho companheiro de escola, de quem a bifurcação das nossas admiráveis vidas de labor me separou tanto tempo!»... Talon não sabe falar de outro modo: uma colina nunca é um apenas um outeiro, mas “um pequeno monte de matéria carbonífera que resultou dos movimentos que agitam o nosso planeta há uns escassos 280 milhões de anos...” O seu discurso rendilhado é objecto de estudo e teses universitárias, bem como a destreza dos trocadilhos, a começar pelo próprio nome, uma guinada na expressão “calcanhar de Aquiles”, que começa no próprio lettering da série, ACH!LLE.

O impecável e perfunctório Achille Talon está, no seu pernosticismo, para a redacção da revista Pilote (que nos gagues aparece como “Polite”), como Gaston Lagaffe, de Franquin, no proverbial desmazelo criativo que lhe assiste, para o semanário Spirou: sem eles, levando directores e chefes-de redacção ao limiar do enfarte do miocárdio, aquilo não passaria de um escritório aborrecido. Goscinny, que dirigia a redacção da Pilote, surge sempre apopléctico, com os dentes cerrados e a espumar.

Tal não sucede no livrinho de hoje, assim como não teremos o prazer de vislumbrar a noiva, Virgule de Guillemets. As Férias de Achille Talon, edição original de 1977, é uma compilação de gagues, que na maioria decorrem num parque de campismo popular e no qual Chichille (como lhe chama o pai) encontra o marquês Constant d'Anlayreur (ou seja, constant dan l'érreur, o que em tradução literal poderia dar algo como “persistente na asneira”, mas que o tradutor anónimo optou, e bem, por um Constante d'Herros. A ânsia de impressionar o pobre marquês, que é um marquês pobre, origina uma série de páginas divertidas. Em alternativa, surge o vizinho Hilarion Lefuneste, com uma loquacidade de surdo-mudo, com quem o nosso anti-herói gosta de implicar.

Criado em 1963 por Greg (1931-1999), um dos grandes argumentistas da BD franco-belga – Bernard Prince, a pura aventura (com Hermann), Bruno Brazil, o thriller de espionagem no tempo da Guerra Fria (com William Vance), Comanche, um western excepcional (de novo com Hermann), Luc Orient, ficção-científica (com Eddy Paape), entre outras, este exímio efabulador aventurou-se também pelo humor retomando Zig e Puce, de Alain Saint-Ogan, ou Clorofila, de Raymond Macherot ambos com o traço de Dupa, o criador do cão Cubitus. Com Achille Talon, Greg mostrou ser também um desenhador inventivo e, por conseguinte, um autor de BD completo.


As Férias de Achille Talon

texto e desenhos: Greg

edição: Meribérica, Lisboa, s.d.

«Leitor de BD»

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

de A a Z - N, de Natacha (François Walthéry & Gos, 1969)



Os efeitos do Maio de 68 chegavam à BD. Natacha, hospedeira do ar, sobrevoando o mundo, é a primeira heroína adulta para o grande público a ser a titular de um série, coadjuvada por um homem, Walt, comissário de bordo, e logo na recatada Spirou... À medida que os anos passaram, Natacha foi-avolumando as formas e encurtando a roupa, tornando-se , obviamente, objecto de pastiches eróticos, quando não de ensaios à margem, no mesmo sentido, do próprio Walthéry.

«Leitor de BD»

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Méga Spirou #28 (Dezembro 2021)



Já por diversas vezes nos referimos ao semanário Spirou, não apenas pela veterania (desde 1938...), mas pela excelente qualidade visível a cada semana, infelizmente apenas acessível ao leitor português por assinatura, Apesar de tradicionalmente orientado para um público infanto-juvenil, o lastro de décadas que carrega no bojo permite recrear um património que tem nomes tão significativos como Lucky Luke ou Gaston Lagaffe. cultivando um espírito de revista-companhia que praticamente desapareceu. Mas alegre-se quem tem interesse em reencontrar este universo e dar a conhecê-lo aos mais novos da família, desde que não tenha grandes dificuldades com o francês: a editora Dupuis publica trimestralmente um volume – este sim, disponível nas nossas bancas – de quase 200 páginas, com dois álbuns, clássicos ou recentes no interior e uma antologia de gags com as personagens da actualidade, do Pequeno Spirou e Cédric, até aos recentes Dad e L'Imbatable - “o único verdadeiro super-herói de banda desenhada” - da autoria de Pascal Jousselin – e é verdade que é mesmo o único... Dentro do espírito de Natal, as histórias completas são A Flauta de Seis Schtroumpfs, por Peyo, uma aventura do já nossos conhecidos heróis medievais João e Pirolito, de 1958, em que pela primeira vez aparecem os pequenos seres azuis da floresta; e O Cosmoschtroumpf (1969). Este número está enriquecido pelos textos do crítico Hughes Dayez, e uma curiosidade de antanho, “O schtroumpf sem esforço”, um método eficaz para aprendizagem daquela língua estranha, da autoria de Peyo e do argumentista Yvan Delporte.

«Leitor de BD»

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

de A a Z - L, de Lucky Luke (Morris, 1946)




O cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra tornou-se para muitos a epítome do western em BD; e não apenas caricatural, tal a recriação profunda desse imaginário que logrou – sem esquecer Goscinny –, e que Matthieu Bonhomme recentemete certificou. Deixou de fumar, no que fez bem.

«Leitor de BD»

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

um pequeno país

Um país pequeno como a Bélgica, que em anteriores encarnações políticas foi pátria de van Eyck, van der Weyden, Bruegel, Rubens, van Dyck até, na figuração actual, Ensor, Magritte ou Delvaux, entre muitos outros, só encontra na opulenta Itália nação que com ela se meça com vantagem; assim também na BD a Bélgica na Europa, pese a França – Uderzo e Goscinny, por exemplo, afirmaram-se primeiro lá e só depois no país natal; ou Jacques Martin... – ou ainda a Itália, a terceira potência do Velho Continente. Historicamente, em face da Bélgica, só os Estados Unidos, com os seus comics.

Régine Vandamme (Bruges, 1961) uma escritora que se assume leitora, seleccionou, em 2003, 19 autores para um mimoso mini coffee table book, e escolhendo, também deixou de fora, inevitavelmente: Hermann (Bernard Prince, Comanche, Duke), a ausência mais gritante, mas ainda o próprio Greg (Achille Talon), E. Aidans (Tounga), François Craenhals (Chevalier Ardent) William Vance (Bruno Brazil, Ramiro, XIII) ou Dany (Olivier Rameau). Dito isto, as escolhas são todas respeitáveis e incontroversas na quase totalidade. Por ordem de nascimento, o livro abre com Edgar P. Jacobs (Blake e Mortimer), o “génio do estilo narrativo rigoroso e grafismo magistral”; em Hergé (Tintin), aponta o contraste entre a perfeição do herói com os múltiplos defeitos das restantes personagens, aliado à grande legibilidade do desenho. Willy Wandersteen (Bob e Bobette), apesar de Hergé lhe chamar o Bruegel da BD, está, quanto a nós, num patamar abaixo. Segue-se o grande Jijé (Jerry Spring), autor do primeiro western humanista, com grandes cenários e enquadramentos audaciosos; Morris (Lucky Luke), o pai da expressão 9.ª Arte; Paul Cuvelier (Corentin), desenho minucioso e sensual; Raymond Macherot (Clorofila, Coronel Clifton, Sibylinne), o animalismo negro da primeira série, a autora fala-nos da espantosa paleta do desenhador; André Franquim (Gaston Lagaffe, Ideias Negras), de quem Hergé dizia que era ele o grande artista; Peyo (João e Pirolito, Schtroumpfs), a clareza imaculada; Guy Peellaert (Jodelle), com a aproximação à Pop Art; Louis Joos e a paixão pelo jazz e o claro-escuro em técnica mista; Comès (Silêncio), a grande tradição do preto-e-branco, na esteira de Milton Caniff, Hugo Pratt e José Muñoz; Claude Renard (Galileu, Diário de um Herético), dum virtuosismo deslumbrante; Sokal (Canardo), um antropomorfismo em policial desbragado; Philippe Gelluck (O Gato), ou o triunfo do nonsense; o abençoado Frank Pé (La Bête), entre Franquin e Egon Schiele; François Schuitten (As Cidades Obscuras), entre Winsor McCay e Moebius; Yslaire (Sambre), uma das mais perturbantes criações da BD, e, por fim, Thierry Van Hasselt, cujas influências vão de Alberto Breccia a Francis Baco, ou a BD a reinventar-se como pintura e talvez a fugir dela própria.

Livro de uma senhora leitora, felizes os autores que são lidos com este amor.


Régine Vandamme, Les Maîtres de la BD Belge

Tournai, La Renaissance du Livre, 2003

«Leitor de BD»

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

leituras de 2021

Leituras” e não livros de 2021, dá título a esta crónica, pois é impossível ter acesso a tudo; além disso, combinar novidades e clássicos foi sempre o nosso propósito.

A grande banda desenhada pode e deve confrontar-se, sem complexos de inferioridade com os parentes mais próximos, a literatura e o cinema, no que ambos carregam de originalidade na abordagem das paixões humanas, como da técnica muito própria da narrativa: o estilo literário, o ritmo e a musicalidade, têm aqui a sua tradução vinheta a vinheta; a montagem cinematográfica encontra o equivalente na chamada découpage ou planificação dr cada prancha, como num storyboard; ou ainda o formato das séries televisivas ou do antigo folhetim que se ia publicando nos jornais, também com um paralelo nas famosas séries em continuação, em que o interesse do leitor deverá ser despertado para prosseguir no dia ou semana seguintes. Os doze títulos que se seguem são todos grande BD.

O Burlão nas Índias, de Ayroles e Guarnido: lemos o peso da desigualdade, a pilhagem e a dominação do outro, tal como sucede em Tex – Patagónia, de Boselli e Frisenda; em A Fera, de Zidrou e Frank Pé, sobressai o tema da compaixão e do preconceito; O Último Homem, por Félix e Gastine, o valor da amizade e da lealdade e ainda as implicações do progresso nas vidas de cada um; o apelo do sangue e a condição da velhice estão presentes em Ghost Kid, de Tiburce Ogier, e Monsieur Vadim, de Ghief, Mertens e Tanco; Gus, de Christophe Blain, e o desvario das relações humanas, a que também assistimos em Tu És a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos, de Brito e Fazenda; a denúncia da guerra, do racismo e a importância da liberdade de imprensa em Mademoiselle J. – Je ne Me Marierai Jamais, de Sente e Verron, e em L'Envoyé Spécial, com os novos autores dos Túnicas Azuis, BéKa e Munuera – a segregação também presente num notável Lucky Luke – Um Cowboy no Negócio do Algodão, de Jul e Achdé, também pelo humor; a precária condição humana agigantada em face dos elementos sobressai em Judea, de Diniz Conefrey sobre texto de Joseph Conrad.

Entre tantos outros que já não cabem aqui, fautores de comédias de enganos, e assombros vários diante da violência da História, os desenhos, do realista ao abstracto, do grotesco ao disneyesco, a prancha audaz, toda a gama de planos, cores aplicadas directamente com pincel ou espalhadas por computador – aqui fica um balanço, num anos de leituras de argumentistas como A.-P. Duchâteau, Alejandro Jodorowsky, Ed Brubaker, Henri Vernes, Jean-Michel Charlier, Lewis Trondheim; e desenhos de Émile Bravo, François Boucq, Mittëi, Moebius, Victor Hubinon; e autores completos como Bob de Moor, Dav Pilkey, E. C. Segar, Greg, Will Eisner. Foi um ano bom.


1. O Burlão nas Índias, Alain Ayrolles e Juanjo Guarnido (Ala dos Livros).

2. A Fera, Zidrou e Frank Pé, (A Seita)

3. O Último Homem, Jerôme Félix e Paul Gastine (Gradiva)

4. Gus – Nathalie, Christophe Blain (Gradiva)

5. Ghost Kid, Tiburce Ogier (Grand Angle)

6.Mademoiselle J. - Je ne Me Marierai Jamais, Yves Sente & Laurent Verron (Dupuis)

7. Monsieur Vadim #1 – Arthrose, Crime & Crustacés, Gihef, Didier Mertens e Morgann Tanco (Grand Angle)

8 . Les Tuniques Bleues – Envoyé Special, BéKa e Munuera (Dupuis)

9. Lucky Luke, Um Cowboy no Negócio do Algodão, Jul e Achdé (Asa)

10. Tu és a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos, Pedro Brito & João Fazenda, 2.ª ed. (A Seita e Comic Heart)

11. Tex – Patagónia, Mauro Boselli & Pasquale Frisenda, 2.ª ed. (Polvo)

12. Judea, Diniz Conefrey (Pianola Editores).

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